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sexta-feira, 6 de abril de 2012

Primeira travesti a fazer doutorado no Brasil defende tese sobre discriminação

Daniel Aderaldo
24/03/2012 08:00

Antes de se tornar supervisora regional de 26 escolas públicas e ingressar no doutorado em Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luma Andrade assinou o nome João por 30 anos, foi rejeitada pelos pais na infância, discriminada na escola e, mais tarde, no trabalho.

Na tese de quase 400 páginas que irá defender em três meses, a primeira travesti a cursar um doutorado no Brasil relata a discriminação sofrida por pessoas como ela na rede pública de ensino. Ela também aponta lacunas na formação dos professores.

Criança nos anos de 1970, no município de Morada Nova, a 170 quilômetros de Fortaleza, o único filho homem de um casal de agricultores, era João, mas já se sentia Luma. Em casa, escondia-se para evitar ser confrontada. Na escola, apanhava dos meninos por querer parecer uma menina. Em uma das vezes que foi espancada, aos nove anos, queixou-se com a professora e, ao invés de apoio, ouviu que tinha culpa por ser daquele jeito.

Mais tarde, já com cabelos longos e roupa feminina, sofria de segunda a sexta-feira na chamada dos alunos, ao ser tratada pelo nome de batismo. Não se reconhecia no uniforme masculino que era obrigada a usar. Evitava ao máximo usar o banheiro. Aturava em silêncio as piadas que os colegas insistiam em fazer. “Se a travesti não se sujeitar e resistir, acaba sucumbindo”, lamenta.

Luma se concentrou nos estudos e evitou os confrontos. "Tem momento que a gente quer desistir. Eu não ia ao banheiro urinar, porque eu queria usar o feminino, mas não podia. Então eu me continha e, às vezes, era insuportável”, relembra. Mas ela concluiu o ensino médio e, aos 18 anos, entrou na universidade. Quando se formou aos 22, já dava aulas e resolveu assumir a homossexualidade. Quando contou que tinha um namorado, foi expulsa de casa. 

Em 2003, já com o título de mestre, prestou concurso para lecionar biologia. Eram quatro vagas para uma escola estadual do município de Aracati, a 153 quilômetros de Fortaleza. Apenas ela passou. Contudo, o diretor da escola não a aceitou. Luma pediu a intervenção da Secretaria de Educação do Estado e conseguiu assumir o posto.

“Eu não era tida como um bom exemplo”. Durante o período de estágio probatório, tentaram sabotar sua permanência na escola. “Uma coordenadora denunciou que eu estava mostrando os seios para os alunos na aula”. Luma havia acabado de fazer o implante de proteses de silicone. “Eu já previa isso e passei a usar bata para me proteger, esconder. Eu tinha certeza que isso ia acontecer”.

Anos depois, Luma assumiu um cargo na Coordenadoria Regional de Desenvolvimento de Educação de Russas, justamente a região onde nasceu. Como supervisora das escolas estaduais de diversos municípios, passou a interceder em casos de agressões semelhantes ao que ela viveu quando era estudante.

“Uma diretora de escola fez uma lista de alunos que, para ela, eram homossexuais. E aí mandou chamar os pais, pedindo para que eles tomassem providências”. A providência, segundo ela, foi “muito surra”. “O primeiro que foi espancado me procurou”, lembra. Luma procurou a escola. Todos os gestores e professores passaram por uma capacitação para aprender como lidar com a sexualidade dos estudantes.

Um ano depois, em 2008, Luma se tornou a primeira travesti a ingressar em um doutorado no Brasil. Ela começou a pesquisar a situação de travestis que estudam na rede pública de ensino e constatou que o caso da diretora que levou um aluno a ser espancado pelos pais e todas as outras agressões sofridas por homossexuais tinham mesma a origem.

“Comecei o levantamento das travestis nas escolas públicas. Eu pedia para que os gestores informassem. Quando ia averiguar a existência real do travesti, os diretores diziam: ‘tem aquele ali, mas não é assumido’. Percebi que estavam falando de gays”, relata.

A partir desse contato, Luma trata em sua tese de que as travestis não podem esboçar reações a ataques homofóbicos para concluir os estudos.

Mas também sugere que os cursos de graduação em licenciatura formem profissionais mais preparados não apenas para tratar da homossexualidade no currículo escolar, mas também como lidar com as especificidades de cada pessoa e fazer da escola um lugar sem preconceitos.

“Cada pessoa tem uma forma de viver. Conforme ela se apresenta, vai se comunicar e interagir. O gay tem uma forma de interagir diferente de uma travesti ou de uma transexual. O não reconhecimento dessas singularidades provoca uma padronização. A ideia de que todo mundo é ‘veado’”.

A tese de Luma já passou por duas qualificações. Ela está em fase final, corrigindo alguns detalhes e vai defendê-la em julho, na UFC, em Fortaleza. 

Disponível em <http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/primeira-travesti-a-fazer-doutorado-no-brasil-defende-tese-sobre/n1597707581246.html>. Acesso em 25 mar 2012.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A realização de um sonho

Saulo Pithan 
quinta | 19/01/2012 07:42:00

Desde o dia 16 de dezembro do ano passado, a autônoma Fabiane da Rosa Luiz, de 32 anos diz estar vivendo uma nova vida. Aquilo que ela prefere chamar de “nascer de novo” começou desde que ela se deitou em uma mesa cirúrgica do Hospital das Clínicas, em Porto Alegre (RS), para se submeter a um procedimento pouco comum, que durou mais de quatro horas.

Do centro cirúrgico, ela saiu diferente: sem os testículos e o pênis. Fabiane, que faz questão de esquecer o nome de batismo – Fábio da Rosa Luiz - conseguiu depois de muito esforço realizar o seu maior sonho. Passou pela cirurgia de extração dos órgãos sexuais masculinos.
Os procedimentos cirúrgicos constituíram o passo mais contundente da transformação de Fábio em Fabiane, primeiro transexual masculino do Vale do Araranguá a realizar uma cirurgia de mudança de sexo custeada pelo Sistema Único de Saúde. Essa prática já existe desde 2008 no Brasil, mas apenas agora ela conseguiu realizar o sonho de se tornar mulher.

Para Fabiane, a realização da cirurgia representa o último ato de uma peça ruim em que ela encarna o personagem errado. "Desde criança, me entendo como menina", diz. Cedo, refutou o nome Fábio: preferia Fabiane. Nascida em Araranguá, na pequena comunidade de Rio dos Anjos, teve que esconder e reprimir todos os seus desejos. “Sentia atração por homens. Nunca gostei de gays. Eu não conseguia gostar do meu órgão sexual e quando tinha sete anos de idade já sabia que algo estava errado comigo. Eu não aceitava ter o corpo de menino, tendo alma e gostos de menina,” conta.

No primeiro dia de aula, foi parar na fila das meninas. "Eu não entendia por que meu lugar era junto aos meninos". A escola, aliás, foi o principal palco do descompasso com o corpo nos primeiros anos. Nas aulas de educação física, o garoto queria compor o time das meninas na prática de modalidades esportivas. O futebol, exclusividade masculina, ela deixava de lado e preferia ficar sentada no canto ao ter que correr atrás da bola. “A professora mesmo assim insistia em fazer eu jogar. Então sempre era alvo de deboche dos colegas e todos riam do meu jeito feminino,” afirma.

O drama do personagem bipartido cresceu à medida que seu corpo se desenvolvia. A partir da adolescência, com as mudanças próprias da fase, tudo se complicou. Com uma amiga que na época trabalhava em uma farmácia, teve acesso a hormônios femininos, que afinaram a voz, e fizeram nascer pequenos mamilos. Sem a devida orientação médica, acabou impondo mais dor ao corpo que queria transformar. "Tomei doses excessivas de hormônios e sofri muito com isso. Eu sabia dos riscos que corria, mas a vontade de me tornar mulher era muito maior", diz.

Fabiane recorda que foi alvo de muito preconceito. Quando resolveu mudar-se com a mãe para Maracajá, após a morte do pai, teve que enfrentar outro terrível drama. Ao passar pelas ruas da pequena localidade de Vila Beatriz para ir ao trabalho, já aos 24 anos e com características femininas bem marcantes por conta das altas doses de hormônios que ingeria, era insultada e chegou a ser apedrejada por crianças na rua.

“Nunca vou me esquecer deste dia. Foi um dos mais tristes da minha vida. Eu voltava do trabalho e as crianças saíram correndo atrás de mim, chamando de maricona e jogando pedra brita. Obviamente que incentivadas pelos pais. Me senti um cão de rua e desde aquele dia, recebi um grande apoio de minha mãe e consegui adquirir confiança para seguir adiante e lutar pelo sonho de me transformar em uma mulher,” desabafa.

Transtorno, não doença

A incompatibilidade entre corpo e mente não é uma peculiaridade de Fabiane. Segundo ela, a incômoda sensação de ocupar a estrutura física errada é comum aos transexuais. Após permanecer por longos dois anos frequentando grupos de tratamento, sendo esta a primeira etapa do processo para a cirurgia, diz ter aprendido muito sobre o assunto. "A gente sente vergonha, constrangimento e, muitas vezes, não consegue nem ao menos saber quem na verdade é. Não é uma questão de comportamento sexual, mas de identidade de gênero. Trata-se de um transtorno de gênero, não uma doença", relata.

Para Fabiane, possuir órgãos masculinos era um transtorno. Cultivar seios, um desejo. É algo completamente distinto da homossexualidade. "Nela um homem, por exemplo, se aceita enquanto homem, mas seu desejo sexual recai sobre outro homem. Já o transexual não aceita o corpo que tem, não se vê refletido nele”, esclarece.

Esse é o perfil das centenas de transexuais que aguardam na fila de espera pela mudança no corpo. Fabiane diz que agradece a Deus por ter conseguido, mas conta que nada foi fácil. Depois de ter resolvido correr atrás do seu maior sonho, teve que enfrentar barreiras como a falta de esclarecimento do sistema de saúde local. Em Maracajá, por exemplo, nem os médicos da rede básica de saúde e nem psicólogos do município sabiam sobre os procedimentos. Foi depois de muito pesquisar na internet que conseguiu contato com o Hospital das Clínicas em Porto Alegre, para onde foi tentar a sorte.

Para conseguir emitir os laudos que autorizam a cirurgia bancada pelo SUS, teve que passar pelo centro de triagem em Porto Alegre, que é o único no Sul do país, fora ele existem apenas mais três. A emissão do laudo encerra um processo que se estende por dois anos, durante os quais as condições físicas, mentais, sentimentais e sociais do candidato à cirurgia são esquadrinhadas até semanalmente por psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e assistentes sociais.

O objetivo, segundo ela, é rastrear pistas que permitam prever casos em que o paciente não está preparado para o procedimento cirúrgico e tudo o que ele acarreta. Um diagnóstico errado de transexualismo pode, como é fácil prever, desencadear problemas irreversíveis e há até registros de suicídio.

Acompanhamento familiar

Em sua longa jornada rumo ao ato final, Fabiane não contou apenas com a companhia dos profissionais de saúde e assistência social. A seu lado, a mãe, os amigos e o atual companheiro, que prefere não revelar sua identidade. Eles estão juntos há pouco mais de dois anos. Aguardava com ansiedade pela cirurgia e não esconde que o procedimento trouxe alívio para ambos.

"Hoje, não somos vistos como um casal heterossexual, porque, em geral, as pessoas não compreendem o que é a transexualidade", diz. "Ela nasceu num corpo inadequado, e a cirurgia tirou dos ombros dela um peso desnecessário. Quando conheci, dentro do meu táxi, nunca imaginei que fosse um homem. Na verdade sempre a tratei como uma mulher, mas eu queria viver com uma mulher e a cirurgia me deu essa oportunidade. Tanto pra mim quanto pra ela".

Com o laudo do transexualismo em mãos, Fábio já deu entrada no processo para mudança de nome. Depois da aprovação por um juiz, passará oficialmente a se chamar Fabiane da Rosa Luiz. Por enquanto, a sensação de felicidade já é plena. “Tenho minha vida que sempre quis, um companheiro que amo, uma casa, e assim que estiver totalmente recuperada da cirurgia volto a trabalhar normalmente como toda mulher. Posso dizer que nasci de nova e depois de 32 anos vou conseguir a minha felicidade de volta", finaliza.

Disponível em <http://www.atribunanet.com/noticia/a-realizacao-de-um-sonho-74799>. Acesso em 19 jan 2012.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Que mulher é essa? Uma encruzilhada identitária entre travestis e transexuais

CARVALHO, Mario Felipe de Lima
Mestrando em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social da UERJ


Resumo: Este trabalho não pretende discutir a travestilidade e a transexualidade como conceitos a serem criteriosamente definidos, diferenciados ou aproximados; mas, a partir de relatos de pessoas que se colocam como travestis e transexuais, buscar uma compreensão das condições sociais que possibilitam a construção de uma identidade ou categoria transexual como deslizamento ou resignificação da vivência travesti. É importante lembrar que hoje há um esforço dentro do movimento LGBT por uma definição fixa que diferencie travestis de transexuais, e que não é nosso objetivo resolver este debate que faz parte das disputas políticas dos movimentos sociais e das proposições de políticas públicas identitárias. Além disso, sustentamos nossa hipótese da identidade transexual como deslizamento da identidade travesti no surgimento histórico das duas categorias no movimento LGBT e no âmbito médico.