Pedro Henrique Arcain Riccetto; Guilherme Fonseca de Oliveira
19 de outubro de 2014
Com a ascensão de um Congresso aparentemente mais
conservador e faltando poucas semanas para o segundo turno das eleições
presidenciais, as discussões envolvendo direitos humanos encontram-se ainda
mais inflamadas do que o usual. Nesse cenário, assuntos supostamente assentados
renascem e acabam interferindo nos rumos da corrida eleitoral, mesmo que
indiretamente.
Dentre outras pautas, o casamento igualitário e a
conceituação do instituto familiar foram objetos de recente projeto de lei, que
em breve deverá ser debatido pela nova conformação do poder Legislativo.
Tramita perante a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei
6.583/13, de relatoria do deputado Anderson Ferreira, denominado “Estatuto da
Família”. Dentre outras inovações, o projeto pretende redefinir o conceito de
entidade familiar, ao afirmar em seu artigo 2º que “para os fins desta lei,
define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união
entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda
por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
A disposição legislativa vem na contramão da decisão do
Supremo Tribunal Federal no julgamento conjunto da ADI 4.277 e da ADPF 132, que
reconheceu, naquela oportunidade, a união estável para casais do mesmo sexo.
Embora em interpretação contrária à literalidade das
disposições do artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição da República, e também
do artigo 1.723 do Código Civil, a corte entendeu unanimemente por dirimir essa
questão a partir da norma vedadora de discriminação constante dos objetivos da
República (artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal) e de uma série de
outros direitos fundamentais, obstados de fruição em razão de ausência de
regulamentação.
A superveniência da lei, caso aprovada, evidenciaria a
dissonância entre Judiciário e Legislativo, e o embate ocasionaria situação de
fato insustentável: parte dos casais homossexuais teria sua união estável
reconhecida, ao passo que os demais, cuja relação se deu início em momento
posterior à vigência da lei, não estariam abarcados no conceito de entidade
familiar. Daí se retira três hipóteses distintas: a) casais que já tiveram o
reconhecimento de sua união estável, por decisão judicial ou escritura pública;
b) casais que vivam, à época, em união estável de fato, mas deixaram de
formalizá-la; e c) casais cujo início da união estável se deu em momento
posterior à vigência do “Estatuto da Família”.
Quanto aos integrantes do grupo “a”, cremos não haver
maiores discussões ou divagações teóricas a serem pontuadas, face ao direito
adquirido (CF, artigo 5º, inciso XXXVI).
Relativamente aos integrantes do grupo “b”, por não haver
posicionamento definido — doutrinário ou jurisprudencial — não se pode afirmar
a viabilidade do reconhecimento da união estável e os direitos dela
decorrentes. Por um lado, a vedação do retrocesso parece garantir esse direito
àqueles casais que conviviam em união estável de fato anteriormente à vigência
da lei. Há quem invoque também o chamado princípio da proteção da confiança.
Por outro lado, pode-se defender que a edição desta lei, fruto da manifestação
democrática, retiraria a legitimidade da decisão proferida; nesse caso, vedado
o reconhecimento.
Quanto aos integrantes do grupo “c”, considerando que
processo legislativo não se subordina ao entendimento jurisprudencial, e que
aquele se sobrepõe a este, a consequência do novo conceito de entidade familiar
obstaria o direito ao reconhecimento da união — pelo menos até pensarmos em
nova declaração de inconstitucionalidade, o que, ainda assim, acirraria o
debate no que tange à separação dos poderes e o ativismo judicial.
Ainda que amplamente defendida no mérito a decisão no
julgamento das referidas ações diretas de inconstitucionalidade, não se duvida
que os efeitos do período eleitoral repercutam não só no posicionamento do
Legislativo, mas também, caso aprovado o “Estatuto da Família”, no debate
acerca dos limites interpretativos do Supremo face à literalidade da
Constituição e sua relação com a crise de representatividade dos parlamentares.
Também não deve se esquecer, a par do debate jurídico
inicialmente desenvolvido, daqueles indivíduos integrantes dos grupos “b” e
“c”, na hipótese de prevalecer o não reconhecimento de sua situação de fato
como compatível com o ordenamento. Caso não esteja nosso direito ou os anseios
populares suficientemente maduros para encarar as alterações relacionais da
sociedade, será que podemos imputar o ônus de um conservadorismo majoritário
nas mãos daqueles que vivem em situação negligenciada pelo Estado? Esperamos
que o debate não se encerre por aqui.
Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-out-19/estatuto-familia-criaria-cenario-insustentavel-casais-homossexuais.
Acesso em 20 out 2014.