Roberta de Medeiros
dezembro de 2009
Diante de um mercado forte e diversificado, o homem da
sociedade contemporânea é continuamente bombardeado por sedutoras peças
publicitárias, que prometem bem-estar, status, conforto, projeção imediata e
ilusão de segurança. Com a chegada das festas de fim de ano, a lógica do
“consumo, logo existo”, segundo a qual o bem-estar é conquistado pela aquisição
de produtos, se torna ainda mais evidente. Em casos extremos, a compulsão por
compras pode se tornar patológica.
Dois psiquiatras, o alemão Emil Kraepelin (1856-1926) e o
suíço Eugen Bleuer (1857-1939), foram os primeiros a escrever sobre o comprar
compulsivo (ou oniomania), no início do século XX. Para os pesquisadores, levar
em conta a dificuldade de controlar o impulso é elemento essencial para
compreender o quadro. Eles observaram que algumas mulheres com esse diagnóstico
buscavam excitação, assim como os jogadores patológicos. O tema caiu no
esquecimento nos anos seguintes e foi retomado de forma mais intensa na década
de 90. O transtorno, porém,ainda não é considerado uma doença pela Organização
Mundial da Saúde (OMS).
Segundo a psicóloga Tatiana Filomensky, do Ambulatório dos
Transtornos do Impulso do Hospital das Clínicas, a pessoa que sofre de
compulsão experimenta uma forte ansiedade que só é aliviada quando faz a
compra. “Ela não consegue controlar um desejo intrusivo e repetitivo. O ato é
imediatamente seguido por intenso sentimento de alívio.” Em situações de
impossibilidade de comprar podem aparecer sintomas como irritação, sudorese,
taquicardia, tremor e sensação de desmaio iminente. Algum tempo depois de
adquirir a nova mercadoria, porém, surge a sensação de remorso e decepção
diante da incapacidade de controlar o impulso. Numa atitude compensatória, o mal-estar
causado pela culpa leva a pessoa a comprar novamente, dando continuidade ao
círculo vicioso.
Numa sociedade que estimula o máximo consumo e a satisfação
do prazer imediato, a compulsão por compras não é notada tão prontamente pela
família, diferente do que ocorre com de outras dependências, como o abuso de
drogas. Por isso, quem sofre do transtorno leva muitos anos para reconhecer o
caráter patológico do seu comportamento. Mas quando isso acontece, a pessoa
sente vergonha por não vencer a batalha contra o impulso – e, assim, o
transtorno pode ser mantido em segredo por anos a fio.
Segundo a psicóloga Juliana Bizeto, coordenadora do
Ambulatório de Dependências Não Químicas, da Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), a avaliação do problema não é feita com base na quantidade de
dinheiro gasto. Isso, por si só, não constitui evidência para diagnóstico, mas
sim prejuízo que o comportamento pode causar na vida da pessoa, já que ela
passa a negligenciar atividades sociais importantes como trabalho e família. “O
que deve ser considerado é a relação do paciente com a compra. Para o
compulsivo, o único prazer está no ato de adquirir, ele não pretende usufruir
do objeto: é um comportamento vazio”, afirma. Há, portanto, uma restrição do
prazer, um empobrecimento social e uma queda da qualidade de vida, já que a
pessoa se torna apática diante de outros estímulos.”
Em sua tese de doutorado, Juliana Bizeto investiga os
fatores de risco que estão envolvidos com o surgimento de dependências não
químicas. Com base em dados de uma pesquisa realizada com pacientes compulsivos
atendidos pelo Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad), da
Unifesp, ela constatou que um aspecto de grande importância é a falta de
inserção social. “A pessoa que não está inserida em um grupo social, seja no
trabalho, na família ou na igreja tem maior possibilidade de desenvolver algum
tipo de dependência, seja por compras, jogos, sexo ou internet”, observa.
O artigo “Compulsive Buying. Demography, Phenomenology and
comorbidity in 46 subjetcs”, publicado pelo periódico Gen Hosp Psychiatry em
1994, mostra que 94% dos compradores compulsivos são mulheres. Juliana
ressalta, porém, que a presença do transtorno na população masculina pode estar
subestimado. “Não sabemos se as mulheres são realmente as maiores vítimas ou se
são as que mais frequentemente procuram o serviço de saúde. Em alguns casos, a
gravidade do quadro é ainda mais acentuada nos homens porque eles demoram a
buscar tratamento e, quando isso acontece, chegam ao ambulatório muito
comprometidos”, ressalta.
Tempo de abusos
Nem sempre esse comportamento se repete durante o ano todo.
A pessoa também pode ter “orgias” de compras ocasionais em algumas situações,
como aniversários, épocas de festas e férias. A terapeuta observa, porém, que o
gasto episódico não é suficiente para confirmar um diagnóstico. “No caso da
compra por hábito ou impulso, a pessoa se sente atraída pelo produto; quando se
trata de compulsão há descontrole, o compulsivo simplesmente não resiste e
compra”, diz a psicóloga Júnia Cicivizzo Ferreira, da Unifesp.
Ela lembra que, em geral, os adolescentes são alvos fáceis
quando o assunto é o consumo exagerado. O transtorno tem início no final da
adolescência, fase em que as pessoas conseguem crédito pela primeira vez,
fazendo com que alguns já iniciem a vida adulta como uma dívida incalculável.
As compras descontroladas feitas por adolescentes podem estar associadas ao
abuso de drogas e de álcool e ao início precoce da vida sexual.
Apesar de o custo do transtorno nunca ter sido calculado, estima-se que o
impulso de comprar movimente mais de US$ 4 bilhões em compras anuais nos
Estados Unidos, segundo o artigo “The Influence of culture on cunsumer
impulsive buying behavior”, de 2002, publicado na revista J. Consume Psycol.
Segundo Tatiana Filomensky, o comportamento compulsivo pode
servir como meio de descarga para sanar angústias, raiva, ansiedade, tédio e
pensamentos de desvalorização pessoal. Segundo ela, trata-se de um movimento
aprendido. Embora não haja um “modelo”, há muitos casos de pessoas com o
transtorno que tiveram pais ausentes que compensavam negligência com presentes.
“Há casos, por exemplo, de pessoas que se atrasam para buscar o filho na escola
e depois os compensam com doces ou brinquedos. Com isso, ensinam que objetos e
produtos aplacam a tristeza; esse comportamento pode ser adotado pela criança
na fase adulta.”
“Há pais que passaram por dificuldades financeiras na
infância e, na melhor das intenções, tentam poupar os filhos de privações”, diz
o psicólogo Luiz Gonzaga Leite, coordenador do Departamento de Psicologia do
Hospital Santa Paula e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de
São Paulo. “Isso pode comprometer a ideia de limite tornar essas crianças,
adultos incapazes de suportar frustrações.”
Poder e narcisismo
O psicólogo Antonio Carlos Alves de Araújo concorda que o
transtorno está relacionado à carência afetiva, mas acredita que o problema
também tenha implicações com a necessidade de estabelecer relações de poder.
“Nossa organização social nos ensina que para ser poderoso é preciso possuir
objetos. O desejo de posse pode ser uma forma de compensar sensações de
inferioridade que vivemos na infância diante dos adultos. Parte daí a vontade
de mostrar, mais tarde, que somos fortes. E essa busca é realimentada pela
cultura: afinal de contas, a carência dá lucro.”
Já o psicanalista Joel Birman, professor de psicologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que a voracidade do
compulsivo está envolvida com elementos tão presentes na atualidade, como o
narcisismo, o culto ao eu e o vazio existencial. O ato de comprar, segundo ele,
equivale a uma experiência erótica que atenua o sofrimento do homem
contemporâneo. “As pessoas recorrem ao consumo exagerado para que possam exibir
uma imagem narcísica, que tem por objetivo o preenchimento do vazio com
objetos. A compulsão se baseia numa lógica social que supervaloriza o ter em
detrimento do ser.”
Segundo Birman, a pessoa está sujeita ao consumo
incontrolável à medida que projeta ideais de perfeição nos ídolos idealizados,
fabricados pela indústria cultural, que suprem a carência afetiva. “Nossa
cultura valoriza astros envolvidos em impressões estéticas e performáticas, o
que aumenta a insegurança das pessoas sobre o que têm como potência. Isso
deflagra uma sensação generalizada de desqualificação. Se não fôssemos
bombardeados a cada instante pelo estrelismo alardeado pela mídia, estaríamos
menos tomados pela compulsividade.”
O avarento e o perdulário: duas faces da mesma moeda
Em seu livro Do ter ao ser, o psicanalista Erich Fromm diz
que possuir coisas é uma condição inerente ao homem. Há cerca de 12 mil anos,
com a fundação da agricultura, nossos ancestrais passaram a desenvolver uma
ligação mais intensa com utensílios e adornos. Os objetos eram usados no
cotidiano e tinham funcionalidade. Na sociedade capitalista, porém, a
propriedade deixa de ter esse caráter utilitário: em geral, acumulamos mais
bens do que somos capazes de usar.
Do ponto de vista psíquico, o avarento e o esbanjador têm em
comum a relação patológica com a propriedade, relacionada ao “ter possessivo”:
ambos querem acumular mais que seria necessário para o seu uso. Tanto a
infinidade de objetos que o gastador acumula em suas incursões por lojas de
departamentos quanto o dinheiro que o poupador exagerado deixa de gastar
remetem à ideia de uma propriedade morta, uma vez que os bens deixam de ter
qualquer funcionalidade ou valor de uso.
Em seu texto “Caráter do erotismo anal”, de 1908, Sigmund
Freud propõe um paralelo entre os interesses envolvidos no ato de acumular bens
e o dinheiro. Segundo a teoria psicanalítica, a criança se agarra ao desejo de
possuir porque ainda não é capaz de produzir – e essa sensação faz parte do
desenvolvimento saudável. Mas se o adulto se torna refém do sentimento de
posse, isso pode significar que ainda não se sente capaz de criar algo por si.
Fatores biológicos
Pesquisas indicam que alguns neurotransmissores têm papel
importante no surgimento do comportamento compulsivo. É o caso da serotonina,
envolvida nos processos de regulação dos estados de humor e do sono. Pouca
quantidade da substância no cérebro parece estar ligada à impulsividade. Um
estudo que examinou usuários de ecstasy, droga que leva à perda de neurônios de
serotonina, mostrou que esse grupo apresentou maior propensão à impulsividade e
tomadas de decisões erradas.
Outra substância que pode estar envolvida na compulsão é a
dopamina, relacionada à dependência de substâncias e de comportamentos. As
alterações na atividade do neurotransmissor podem estar associadas à busca de
recompensas, que causam sentimentos de prazer. Alguns autores do estudo propõem
a existência de um mecanismo de dependência desencadeado pela diminuição de
dopamina, que provoca a chamada síndrome de deficiência da recompensa e indica
que algumas pessoas têm mais risco de desenvolver dependência.
Estudos com pacientes com doença de Parkinson reforçam a
hipótese de que a dopamina está envolvida nos transtornos do controle dos
impulsos. Vários pacientes examinados apresentavam comportamento repetitivo de
busca de recompensa, como compulsão por jogo, sexo, comida e compras. Esse
comportamento estaria relacionado com a degradação das células neurais que
captam a substância, em função da doença e do tratamento.
Disponível em http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/consumo_logo_existo.html.
Acesso em 10 ago 2013