Sidarta Ribeiro
maio de 2014
Para entender para que serve o sonho, necessitamos
compreender algo básico: o homem contemporâneo tende a esquivar-se de todo
risco. Em vez de caçadas perigosas e coletas incertas, fazemos visitas
regulares ao supermercado. No lugar de turnos de guarda noturna alternados para
evitar um ataque traiçoeiro na madrugada, temos a segurança dos muros, portas
trancadas e alarmes. Em lugar de pedras e peles, dormimos sobre colchões
anatômicos. Em vez da dificuldade de encontrar parceiros sexuais férteis que
não sejam parentes próximos, apenas o risco de levar um não de uma pessoa
desconhecida numa festa ou bar.
Se os sonhos alguma vez foram essenciais para nossa
sobrevivência, já não o são. Isso não quer dizer, entretanto, que os sonhos não
mais desempenhem um papel cognitivo. Para esclarecer que papel é esse, é
preciso em primeiro lugar desconstruir a noção de que os sonhos refletem algum
tipo de processamento neuronal aleatório. Embora regiões profundas do cérebro
de fato promovam durante o sono REM um bombardeio elétrico aparentemente
desorganizado do córtex cerebral, há bastante evidência de que os padrões de
ativação cortical resultantes desse processo reverberam memórias adquiridas
durante a vigília.
Mesmo que não soubéssemos disso, bastaria um pouco de
reflexão e introspecção para refutar a teoria aleatória dos sonhos. A
ocorrência múltipla de um mesmo sonho é um fenômeno detectável, ainda que
ocasional, na experiência da maior parte das pessoas. Pesadelos repetitivos são
sintomas bem estabelecidos do transtorno de estresse pós-traumático, que
acomete indivíduos submetidos a eventos excessivamente violentos. Dada a imensa
quantidade de conexões neuronais existentes no cérebro, seria impossível ter
sonhos repetitivos se eles fossem o produto de ativação ao acaso dessas
conexões.
Além disso, sonho e sono REM não são o mesmo fenômeno e
sequer têm bases neurais idênticas. Temos certeza disso porque existem
pacientes neurológicos que perdem a capacidade de sonhar mas não deixam de
apresentar o sono REM. Nesse caso, as regiões lesionadas, descritas por Mark
Solms, são circuitos relacionados com a motivação para receber recompensas e
evitar punições. Essas estruturas utilizam o neurotransmissor dopamina para
modular a atividade de regiões relacionadas à memória, emoção e percepção.
Sonhar com algo na vigília é o mesmo que desejar – e é exatamente de desejo que
são feitos os sonhos. Curiosamente, são os níveis de dopamina que, em
experimentos com camundongos transgênicos, regulam a semelhança entre os
padrões de atividade neural observados durante o sono REM e a vigília.
Portanto, a ideia de que psicose é sonho, ridicularizada por décadas, também
encontra apoio na neuroquímica moderna.
E ainda, ao contrário da teoria de que os sonhos são
subproduto do sono sem função própria, prevalece cada vez mais a noção de que o
sono e o sonho são cruciais para a consolidação e a reestruturação de memórias.
Ambos os processos parecem ser dependentes da reverberação elétrica de padrões
de atividade neural que ocorrem enquanto dormimos e representam memórias
recém-adquiridas. Essa reverberação se beneficia da ausência de interferência
sensorial durante o sono e resguarda o processamento mnemônico de perturbações
ambientais. A reverberação é favorecida também pela ocorrência de oscilações
neurais durante o sono sem sonhos, chamadas de ondas lentas. Os pesquisadores
Lisa Marshall, Jan Born e colaboradores da Universidade de Lübeck, na Alemanha,
demonstraram que é possível aumentar a taxa de aprendizado realizando estimulação
elétrica de baixa frequên¬cia durante o sono de ondas lentas.
Em contrapartida, como venho demonstrando junto com outros
grupos de pesquisa desde 1999, o sono REM parece ser fundamental para a fixação
de longo prazo das memórias em circuitos neuronais específicos. Esse processo
depende da ativação de genes capazes de promover modificações morfológicas e
funcionais das células neurais. Tais genes são ativados durante a vigília
quando algum aprendizado acontece e voltam a ser acionados durante os episódios
de sono REM subsequentes. Como resultado, memórias evocadas por reverberação
elétrica durante o sono de ondas lentas são consolidadas por reativação gênica
durante o sono REM. Essa reativação cíclica das memórias em diferentes fases do
sono e da vigília vai paulatinamente fortalecendo os caminhos neurais mais
importantes para a sobrevivência do indivíduo, enquanto as memórias inúteis são
gradativamente esquecidas.
Experimentos eletrofisiológicos e moleculares mostram ainda
que as memórias migram de um lugar para outro do cérebro, sofrendo importantes
transformações com o passar do tempo. Meu laboratório tem mostrado que áreas do
cérebro envolvidas na estocagem temporária de informações, como o hipocampo,
apresentam reverberação elétrica e reativação gênica apenas durante os
primeiros episódios de sono após o aprendizado. Em contraste, áreas do córtex
envolvidas na armazenagem duradoura das memórias apresentam persistência desses
fenômenos por muitos episódios de sono após a aquisição de uma nova memória.
Disponível em
http://www2.uol.com.br/vivermente/noticias/para_que_de_fato_serve_o_sonho_.html.
Acesso em 01 dez 2014.