Bernd Simon
março de 2005
A cela é pequena e suja. Três homens vestindo trajes
desbotados estão encolhidos no chão. Quietos, estremecem a cada ruído no
corredor. De repente, dois guardas usando uniforme e óculos escuros aparecem na
porta, batendo os cassetetes nas mãos. A violência está para começar.
Seis dias antes, tanto prisioneiros como guardas eram jovens
universitários comuns. O ano é 1971, e eles estavam prestes a iniciar uma
experiência de duas semanas planejada por Philip G. Zimbardo. O psicólogo da
Universidade Stanford dividiu aleatoriamente um grupo de estudantes mentalmente
sãos entre "guardas" e "prisioneiros", que deveriam
conviver em uma prisão simulada no campus. Zimbardo teve de interromper o
estudo prematuramente depois de apenas seis dias, porque os guardas haviam se
tornado sádicos, abusando física e psicologicamente dos prisioneiros.
Mas como jovens pacatos puderam se transformar de forma tão
assustadora em tão pouco tempo? Naquela época, Zimbardo ofereceu uma resposta
simplista: protegidas pelo anonimato da multidão, as pessoas perdem todos os
limites e desprezam normas éticas. Na turba, tornam-se animais de um rebanho
desenfreado, sem controle ou compaixão.
Atualmente, o estudo clássico, e polêmico, de Zimbardo é
freqüentemente citado em apoio à idéia do "coletivo maligno". Mas
essa visão se justifica realmente? Pesquisas recentes indicam que, muito embora
grupos levem seus integrantes a se comportar de uma forma que eles não fariam
no dia-a-dia, essas ações podem ser tanto positivas quanto negativas. No final
de 2001, quando os psicólogos britânicos Stephen D. Reicher e S. Alexander
Haslam reproduziram a experiência do prisioneiro para o que viria a ser um
reality show exibido pela rede BBC, os guardas agiram de forma um tanto
cautelosa.
Em razão dos resultados contraditórios, Haslam e Reicher
concluíram que o comportamento do grupo depende das expectativas de seus
membros sobre os papéis sociais que eles deveriam desempenhar. Se acreditam que
se espera deles uma conduta autoritária, é bem provável que ocorram abusos.
Zimbardo, por exemplo, encorajava os guardas a portarem-se de modo ameaçador. A
chave para entender como os indivíduos de um grupo irão proceder são suas
crenças pré-condicionadas sobre o que devem fazer.
Embora os psicólogos possam discordar se indivíduos em uma
multidão tornam-se bons ou maus, eles concordam num ponto fundamental: imerso
no coletivo, o indivíduo extrapola a si mesmo, para o bem e para o mal.
A dinâmica dos grupos e movimentos de massa é fascinante por
causa dos extremos a que podem levar as pessoas. Um indivíduo em um grupo de
voluntários arrisca a vida para salvar uma criança, evitando que ela caia nas
águas de uma enchente, enquanto outro, em nome de uma causa coletiva
"maior", de bom grado se sacrifica como homem-bomba. Demonstrações
desse tipo ocorreram diversas vezes na história, desde a turba clamando pela
crucificação de Jesus até a boa vontade dos povos na recente Olimpíada de
Atenas.
Regras fanáticas
Em geral, o temor das pessoas em relação à mentalidade das
massas cria nelas a expectativa de que grupos apresentem aspectos sinistros,
apesar de a história mostrar, por exemplo, que mudanças sociais positivas são
impossíveis sem movimentos de massa. O surgimento dos direitos humanos, a queda
do Muro de Berlim, o ambientalismo - muitos avanços recentes resultaram do
engajamento massivo de pessoas que lutaram por um bem comum, colocando seus
interesses pessoais em segundo plano para atingi-lo. O experimento da BBC
destrói também a visão negativa, muito disseminada, de que, em uma multidão, a
identidade do indivíduo se dissolve, e ele é levado a cometer atos imorais e
irracionais.
Psicólogos sociais desmistificaram o comportamento coletivo,
demonstrando que se trata de atitudes psicológicas normais e explicáveis
cientificamente. A psicologia do coletivo não é patológica. Mas com certeza a
identidade do indivíduo é, em algum grau, despersonalizada quando ele entra em
um grupo social, seja comitê de ação política, seja clube ou orquestra
sinfônica.
Mas será que isso basta para alguém perder todo o senso de
moralidade e cometer maus atos? A complexa interação entre o "eu" e o
"nós" vem confundindo os cientistas há séculos. Em seu livro
Psychologie des foules (Psicologia das massas), de 1895, o médico e sociólogo
francês Gustav Le Bon argumentava que, em grupo, os indivíduos perdem a
identidade e, conseqüentemente, o autocontrole. Guiados apenas por emoções e
instintos, agem segundo uma força primitiva, que ele chamou de
"inconsciente racial".
Outros pesquisadores afirmaram que coletivos teriam uma
consciência mental independente. O psicólogo britânico William McDougall, que
formulou, no início do século XX, a chamada hipótese da mentalidade de grupo,
considerava que todos aqueles que se juntam a uma multidão abrem mão de sua
identidade em favor de uma "alma coletiva".
As teorias de Le Bon e McDougall foram posteriormente alvo
de ceticismo: em especial, a idéia da massa com sua própria percepção mental
foi considerada por demais metafísica. Mas a noção de perda de identidade do
indivíduo sobrevive. Na década de 70, após o trabalho de Zimbardo, a idéia foi
desenvolvida e aprimorada pelos estudos dos chamados grupos mínimos. Nessas
experiências, os participantes eram alea-toriamente agrupados de acordo com
critérios triviais, como preferências no modo de vestir. Apesar de a divisão
ser arbitrária, na maioria dos casos isso criou forte sentimento de ligação ao
grupo, assim como comportamentos condizentes com esse sentimento.
Baseados nessas investigações, Henri Tajfel, da Universidade
de Bristol, Inglaterra, e John C. Turner, atualmente na Universidade Nacional
da Austrália, em Canberra, formularam, no início dos anos 80, a "teoria da
identidade social". Segundo a tese dos psicólogos, o pertencer a um grupo
criava um "sentimento de nós" no indivíduo, a percepção de uma
"personalidade coletiva". Quanto mais a pessoa se envolve com o
coletivo, maior a sua identificação com ele e mais completa a sua aceitação de
valores e normas do grupo. Estas podem variar desde a autodestruição
voluntária, como a demonstrada por seitas como o Ramo Davidiano em Waco, Texas,
até o socialismo utópico coletivista, caso dos kibutzim em Israel. Ao contrário
dos modelos de Le Bon e McDougall, a teoria da identidade social afirma que os
indivíduos não são arrastados pela mentalidade de grupo, mas escolhem modos em
comum de sentir, perceber, pensar e agir.
A causa do grupo
Apesar disso, objetivos coletivos podem surgir e se fundir
aos objetivos pessoais de alguém - por vezes de modo tão completo que a causa
do grupo se coloca acima de todo o resto. Em razão disso, o indivíduo pode
fazer grandes sacrifícios pessoais por aquilo que supõe ser o bem comum.
Ataques terroristas de homens-bomba suicidas dão testemunho eloqüente do quão
longe podem ir essas ações. Comportamentos agressivos têm mais probabilidade de
irromper se a personalidade coletiva assume o controle sobre a percepção e as
ações do indivíduo. Desse modo, a pessoa não mais distingue entre o
"eu" e o "ele", mas apenas entre o "nós" e
"os outros".
Essa dinâmica pode surgir de forma esporádica também entre
pessoas que levam vidas normais, como o vizinho gentil que todos os sábados se
transforma no barulhento torcedor de futebol, xingando em alto e bom som os
torcedores do outro time. Para ele, essa atitude é o resultado lógico de sua
profunda lealdade ao "nós" de seu amado clube. No melhor dos casos,
esse torcedor irá ignorar o grupo "estrangeiro" - os outros - mas ele
pode, com a mesma facilidade, se tornar desdenhoso e hostil em relação a eles.
Essa transformação não é tanto manifestação de uma misteriosa psique de massas,
mas uma ação racional coletiva que se ajusta a certas regras estabelecidas. O
torcedor de futebol dá seus gritos de guerra no estádio para ajudar seu time a
vencer.
Caso o jogo termine em derrota e a frustração dos torcedores
se transforme em violência, esta não é indiscriminada; ela se dirige ao grupo
oponente, reconhecível por suas insígnias e camisas. Mesmo assim, algumas vezes
as fronteiras entre o "nós" e o "eles" mudam de modo
surpreendente. Torcedores em confronto de uma hora para outra juntam-se contra
a tropa de choque. Em bairros socialmente tumultuosos, membros de grupos
étnicos antagonistas tendem a se unir na luta contra o que eles reputam serem
ações policiais violentas e injustas. Grupos sociais pouco dados à cooperação
podem se aliar em âmbito nacional, como aconteceu nos Estados Unidos depois dos
ataques de 11 de setembro de 2001. No entanto, essas situações não explicam
como uma passeata pacífica de repente se transforma em uma turba atirando
pedras.
O fator crucial parece ser que ações isoladas de indivíduos
podem ter efeito catalisador sobre o grupo. Se o primeiro a arremessar uma
pedra é reconhecível, de forma inequívoca, como um membro do coletivo - por
exemplo, por suas roupas ou palavras-de-ordem - sua ação acaba com qualquer
dúvida que os demais tivessem sobre o papel que devem desempenhar. Eles
rapidamente imitam o comportamento do "personagem exemplar".
Essas ações, que se espalham rapidamente, às vezes surgem
com bastante facilidade em um grupo que não tem um líder forte ou um código de
comportamento firmemente estabelecido. Sem orientação clara, os participantes
reproduzem, por vontade própria, qualquer suposto "exemplo a ser
seguido". Tumultos e quebra-quebras seguem suas próprias regras
espontâneas.
Sob anonimato
Mas por que o indivíduo na multidão anônima deveria seguir
alguma regra? Escondido sob o anonimato, ele poderia facilmente escapar às
regras da coletividade sem temer qualquer sanção. Mas diversos estudos mostram
que, na realidade, o anonimato aumenta a disposição da pessoa a se envolver em
comportamentos excepcionais. Infelizmente, a aquiescência esporádica com
freqüência leva as pessoas a desprezar as regras de comportamento aprendidas
durante a socialização normal, do tipo "Seja educado". Em sociedades
civilizadas, a maioria das pessoas não quer fazer mal aos outros.
No entanto, como mostrou a experiência de Zimbardo, normas
próprias de situações específicas podem surgir, e a adesão a elas ser reforçada
pelo anonimato. Em certo sentido, as pessoas do grupo se vêem encorajadas
porque pensam que as outras pessoas na multidão provavelmente irão apoiar seu
comportamento. Se os voluntários da experiência assumem o papel de guardas de
prisão, a agressão pode muito bem se tornar a norma naquela situação; todos
"sabem", por meio de filmes e de ouvir falar, que guardas de prisão
devem disciplinar os prisioneiros, geralmente por meio do uso da força.
Mas o que faz as pessoas na vida real se unir e se engajar
em clubes, organizações e manifestações? No passado, sociólogos consideravam os
indivíduos que participam de movimentos de massa, no fundo, egoístas
dissimulados. Se e com que intensidade se dava seu engajamento em um grupo
dependia da sua "análise de custo-benefício" pessoal - o que ele
tinha a perder e a ganhar. Hoje em dia, sabemos que a maioria dos membros é
motivada por sua auto-imagem coletiva.Alguém que saiba como influenciar essa
autocompreensão coletiva é capaz de liderar as massas a grandes feitos, como
Martin Luther King Jr., mas também de desencaminhá-las. Essa habilidade é o que
sustenta o carisma de líderes de seitas e revolucionários. Se um herói de
guerra ou um terrorista dá sua vida pelo coletivo, ele não está necessariamente
fazendo uma análise de custo-benefício equivocada. Na verdade, ele deixou de
calcular seu bem-estar pessoal levando em conta a dor ou a morte. Sua
consciência foi completamente tragada pelo coletivo. A morte sacrificial passa
a ser a forma mais elevada de auto-realização.
Nosso recém-adquirido conhecimento sobre a psicologia das
massas talvez nos ajude a, no futuro, resistir à sedução dos demagogos. No
momento, ele nos permite entender as forças criativas das coletividades que
continuam a tornar possíveis muitos avanços.
Disponível em
http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/em_sintonia_com_o_coletivo.html.
Acesso em 30 ago 2014.