Henrique Raposo
28 de março de 2014
Quando investigamos a sério a temática fofa e fracturante,
encontramos episódios de humor negro ou estórias com o seu quê de comédia do
absurdo. Nancy Verhelst (Bélgica) nasceu mulher mas decidiu mudar de sexo. Tudo
bem? Tudo mal. O novo corpo, o corpo de Nathan Verhelst, não agradou a Nancy
Verhelst. Este cidadão ficou assim numa espécie de jetlag identitário e
hormonal, um ser perdido entre linhas. Depois da bateria de operações e
injecções, Nancy/Nathan não ficou como desejava, "quando me olhei ao
espelho, fiquei enojada comigo mesmo". "Eu não quero ser este
monstro", dizia. No final do processo, Nancy/Nathan pediu eutanásia
invocando "dor psicológica insuportável". E assim aconteceu: a
medicina que mudou o sexo a Nancy foi a mesmíssima medicina que matou Nathan.
Este caso, a meu ver, levanta dois problemas morais. Em
primeiro lugar, "dor psicológica insuportável" não devia garantir
acesso à eutanásia. Lamento, mas uma angústia psicológica não é o mesmo que ter
cancro, não é o mesmo que ficar paraplégico. Ou seja, o problema aqui é a
elevação da tristeza à condição de doença, é a transformação dos dilemas morais
em meras questões médicas. Nathan/Nancy não quis fazer a escolha moral, isto é,
não quis enfrentar o dilema do suicídio porque a medicina autorizou a
transformação desse suicídio numa questão técnica e higienicamente amoral. Mas
agora vamos suicidar pessoas devido a estados de alma?
O outro problema está na forma como a medicina mexe e remexe
no corpo humano, julgando que pode fazer tudo, brincando literalmente às
fracturas com a natureza. Sim senhor, as pessoas estão à vontade para mudar de
sexo no sentido de acabar com o jetlag entre corpo e cabeça, mas convém fazer
uma bateria de testes psicológicos antes da operação. Se quiser dar um rim ao
marido necessitado, uma mulher é confrontada com uma brutal onda de perguntas.
Será que os médicos belgas fizeram o mesmo a Nancy? Este caso é um alerta. O
homem não pode alterar a natureza por dá-cá-aquela-palha, há limites à acção
médica e genética. O mundo não é a representação da nossa vontade - uma
limitação que começa no nosso corpo.
Disponível em
http://expresso.sapo.pt/a-tragedia-fraturante-pede-a-eutanasia-depois-da-mudanca-de-sexo=f862886.
Acesso em 31 mar 2014.