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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Travesti Musa vira celebridade e lidera projetos sociais na Baixada

Elenilce Bottari
23/11/13

Em outubro passado, o carioca Ricardo Muniz tornou-se síndico-geral do Parque Valdariosa 2, um dos três blocos do conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida, construído no bairro de mesmo nome, em Queimados, na Baixada Fluminense. Favorito de quatro candidatos, ele recebeu 385 votos. O segundo colocado teve 37. Mais do que um prêmio por sua atuação na comunidade, foi a volta por cima de um guerreiro que, desde criança, lutou contra toda a sorte de preconceito. Ricardo, de 48 anos, nasceu menino, mas hoje vive como uma mulher.

Ele é o terceiro filho de uma família de nove irmãos, quatro homens e cinco mulheres. Nascido e criado na Pavuna, aos 15 anos, começou a estudar para realizar o sonho de sua mãe, que queria vê-lo militar da Aeronáutica, onde serviu por quase dez anos até se tornar cabo. Satisfeito o sonho materno, um dia ele saiu de casa, pela manhã, trajando a farda que tanto orgulhava a mãe, mas, quando voltou, no mesmo dia, depois de pedir baixa no quartel, já era outra pessoa: Musa Pandia, com muito prazer.

— Um amigo me indicou uma moça no Centro que podia montar meu corpo no mesmo dia. Coloquei uma prótese. Quando voltei para casa, foi um choque. Minha mãe com o tempo aceitou, mas meu pai, não. Meu irmão mais velho dizia que se tivesse um irmão homossexual matava. Até hoje, ele não fala comigo — conta a travesti, que aprendeu no quartel a enfrentar animosidades e a se impor pelo respeito.

— O comandante na fila perguntava se eu era homossexual. Eu negava sempre. Dizia: “Não senhor, não senhor, não senhor” — lembra Musa, rindo e acrescentando que “ninguém acreditava mesmo”.

— Minha família sempre foi muito conservadora e tentou mudar meu jeito, mas a gente já nasce como é. E eu detestava coisas de menino. Quando ganhava roupa, eu cortava para transformar em short e colete. Apanhava, mas fazia. Meu irmão não deixava eu brincar com as bonecas das minhas irmãs. Mas eu dizia para mim mesmo que um dia iria trabalhar e ter tudo que queria.

De enfermeira a cabeleireira

Depois do flash-back, que explica em parte como é e também um pouco de seu estilo de vida, Musa mostra o apartamento de 36 metros quadrados, com 60% do espaço ocupados por bonecas, bichos de pelúcia e outros artigos femininos.

Quando deixou a Aeronáutica, ela — agora, adquiriu o direito de ser chamada como gosta — tinha a intenção de trabalhar na Itália, mas desistiu quando soube que lá poderia se perder num mundo de drogas e bebidas. O nome de guerra, Musa, veio depois que ganhou um concurso de transformista em Copacabana.
— Eu era muito nova e parecia mesmo uma menininha. Acabei ganhando — diz.

Entre os vários cursos profissionalizantes que fez, o de auxiliar de enfermagem garantiu-lhe um estágio no Hospital Salgado Filho:
— Eu estava lá quando surgiu aquela história horrorosa do enfermeiro que matava pacientes para a máfia das funerárias. Fiquei tão chocada que desisti. Então abri um salão de cabeleireiro na Pavuna, mas depois de alguns anos decidi fechar por falta de segurança.

Mais uma volta no tempo para lembrar a história do auxiliar de enfermagem Edson Isidoro Guimarães, que em 1999 foi preso acusado da morte de mais de uma centena de pacientes, durante os plantões no Salgado Filho. Musa já viu muita coisa.

Com a morte da irmã, há dois anos, ela decidiu sair da Pavuna e acabou indo parar em Queimados, no apartamento que sua tia tinha conquistado através do programa Minha Casa Minha Vida.

— Eu não conhecia ninguém e, assim que cheguei, foi complicado. As pessoas queriam me taxar, né? “Tem um veado aqui e vai esculachar o condomínio”. Passei um mês sem sair de casa. Comecei a trabalhar como cabeleireira e, aos poucos, fui ganhando a confiança da vizinhança. Quando surgiu uma vaga de porteiro, tudo mudou — recorda-se de quando virou porteira.

Piso de cerâmica e água quitada

Moradora do térreo, Musa decidiu colocar piso de cerâmica na portaria do prédio. Depois, para não ficar sem água, quitou a conta com a concessionária, que estava atrasada. Foi o bastante para, há pouco mais de um mês, ser convencida pelos vizinhos a entrar na disputa para síndico (a).
— Foi em 14 de outubro. O salão estava lotado. Eu ganhei a maioria esmagadora dos votos. Pensei “Musa, você conquistou o pessoal.”

Sem entender nada de condomínios, Musa leu dois livros para estudar suas novas funções. Em um pouco mais de um mês de trabalho, ela renegociou os débitos de R$ 53 mil de luz e R$ 18 mil de água, deixados pela administração anterior. Também construiu um abrigo para o ponto de ônibus que serve aos moradores e mudou o parque das crianças para um ponto mais seguro do condomínio.

Hoje, suas metas são segurança e saneamento. E vem lutando para impedir a venda de drogas no conjunto. Já instalou câmeras de segurança e passa o dia monitorando o movimento, através de dois monitores do circuito interno. Segundo ela, tudo no “diálogo”, mas, quando a crise é grande, admite, fala mais alto o “cabo Ricardo”.

— Não adianta ficar brigando que eles não obedecem. Eu converso uma, duas vezes. Se não funcionar, eu chamo a polícia. E vou junto para que eles saibam que fui eu que chamei, sim, porque não respeitaram o acordo.

Diferentemente de quando chegou, sem ter coragem para sair de casa, hoje, por onde passa, Musa é saudada pelos moradores e pelas crianças. Tem sempre um gaiato cantando o sucesso do MC Bola: “Ela não anda, ela desfila. Ela é top, capa de revista. É a mais-mais, ela arrasa no look. Tira foto no espelho pra postar no Facebook...”
— É sempre assim — conta a moradora Cláudia Cristina da Hora, uma das muitas fãs de Musa.

Segundo ela, a síndica já chegou trazendo benefícios para os moradores:
— A gente quer que os outros prédios tenham um piso como o que ela instalou no edifício dela, sem nem ser síndica. Aliás, ainda antes de ser síndica, o prédio dela era o único que tinha água. Por atraso do condomínio, os outros prédios estavam com a água cortada.

A maior queixa dos moradores é com o esgotamento sanitário:
— O problema é que a manilha só vem até a entrada do condomínio, e os canos internos são insuficientes e não dão vazão. Todo dia, tem entupimento, e a água volta para os apartamentos do primeiro piso. Já reclamamos com a Odebrecht, que diz já ter acabado o contrato e que a gente tem que pagar para trocar o encanamento. Mas muitos moradores aqui não têm como pagar — explica Musa, que vem buscando parcerias para melhorar a vida dos moradores.

— Nós conseguimos um ônibus do Sesc que vai trazer para cá cursos profissionalizantes. Precisamos também de lazer para os jovens. É preciso ocupá-los. Se eles continuarem sem nada para fazer, não vai dar certo, não teremos como controlar o uso de drogas — observa, com a autoridade que a experiência de vida lhe deu.

Entre os parceiros, está agora o Projeto Valdariosa, da Caixa Econômica Federal, que pretende fazer um estudo sobre o conjunto habitacional e seu entorno para produzir um plano de desenvolvimento local. O objetivo é melhorar a qualidade de vida dos moradores de unidades construídas pelo programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal. Com apoio da prefeitura de Queimados, o projeto é executado por meio de uma parceria entre o Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e o Metrópole Projetos Urbanos (MPU).

— O objetivo é implantar ações capazes de garantir sua sustentabilidade e governabilidade e estabelecer a reaplicabilidade em outros conjuntos habitacionais do Minha Casa Minha Vida. O projeto é participativo no sentido de encontrar soluções de baixo para cima. Assim, a população e os síndicos são os protagonistas do processo — explicou o sociólogo Paulo Magalhães, do Iets, coordenador do projeto de desenvolvimento sustentável do conjunto Valdariosa. Segundo ele, o trabalho vem sendo desenvolvido de forma compartilhada e está focado em ações de trabalho, renda e governança.

Coração solitário

Construído em 2010, o conjunto fica no bairro Parque Valdariosa, em Queimados, e tem 1.500 apartamentos, divididos em três blocos: cada um conta com 25 edifícios de cinco andares. Desde outubro, a equipe do Projeto Valdariosa entrevista moradores, lideranças comunitárias e gestores locais e reúne dados estatísticos. As informações vão gerar um Diagnóstico Participativo, com perfil dos residentes e um panorama do conjunto e do bairro.

— O diagnóstico é o primeiro passo para a construção de um Plano de Desenvolvimento Integrado e Sustentável e uma agenda local — explica Magalhães.

Para Musa, a integração entre o conjunto e o entorno é fundamental para garantir a qualidade de vida e a segurança dos moradores:
— Outra reforma que estamos providenciando é a do muro. Não adianta fechar a murada que os moradores derrubam, porque não tem passagem para eles atravessarem para o outro lado da Dutra. Então, depois de uma conversa com eles, decidimos colocar portões dos dois lados, para a Dutra e para ir à padaria. Eu vou dar uma chave para cada condômino.

— O que faz a Musa fazer tanto sucesso aqui é o fato de ela respeitar os moradores. Por isso, todos respeitam ela — arrisca outro morador.

Com tantas missões a cumprir, a vida afetiva de Musa ficou de lado.
— Não tenho namorado e nem tempo para namorar. Nunca saí com ninguém do condomínio. Isso porque aprendi no quartel a nunca misturar as coisas. É a regra — prega.

O que restou da época de shows ficou na parede da sala do apartamento de Musa, que tem uma decoração psicodélica, cheia de luzes e cores.
— É o meu canto. Adoro minhas bonecas.


Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/travesti-musa-vira-celebridade-lidera-projetos-sociais-na-baixada-10866074#ixzz2lZ9c5Wa2. Acesso em 29 dez 2013.