Luiz Fernando Dias Duarte
02/11/2012
O vocabulário sobre as emoções na cultura ocidental contém
muitas áreas de imprecisão e ambiguidade, o que enseja a impressão comum de não
corresponder a representações sociais sistemáticas, recorrentes e obrigatórias.
Desejo e fantasia são algumas dessas categorias que deslizam com frequência em
nossa linguagem, como se expressassem apenas volúveis devaneios da vida
individual de cada um de nós.
Tanto as psicologias quanto as ciências sociais enfrentam o
desafio de compreender os modos pelos quais se estruturam essas dimensões da
experiência humana – e como emergem e intervêm nas tramas da vida social.
Já nos primeiros tempos das ciências sociais, temas como os
do ‘ideal’, da ‘imitação’, da ‘influência’, da ‘autoridade’, do ‘transe’ se
impunham nessa área sutil da constituição coletiva da vida dita ‘subjetiva’ dos
sujeitos. Dimensões que, sob a forma das ‘paixões’ e da ‘imaginação’, já haviam
motivado os filósofos sociais desde o século 17, devido à sua crucialidade nas
esferas da família, da religião, da política e da prática econômica.
A capacidade de imaginação e de projeção futura de imagens
ideais, desejáveis, é uma dimensão essencial da construção dos sentidos do
mundo em qualquer sociedade. Entre nós, essa capacidade é sobrevalorizada como
chave da ideologia do progresso e da mudança, sob a forma da ‘criatividade’ e
da ‘invenção’. Tanto nossas ciências como nossas artes e nossos meios de comunicação
são lugares regulares do cultivo e fomento da imaginação ideal.
Graças ao extraordinário desenvolvimento da criatividade
científica, produziram-se recentemente novos recursos públicos de
compartilhamento da fantasia e do ideal, concentrados na comunicação digital e
na possibilidade de sua circulação em ‘mundos virtuais’.
A esfera da internet, com suas múltiplas possibilidades de
invenção e comunicação, abriga hoje formas cada vez mais complexas de troca
social
A esfera da internet, com suas múltiplas possibilidades de
invenção e comunicação, abriga hoje formas cada vez mais complexas de troca
social, a partir de posições máximas de individualidade, intimidade e
exclusividade. Cada sujeito social exercita sua vontade e obedece ao seu desejo
de forma singular, ao acessar o espaço virtual e encaminhar na tela suas opções
de navegação. Esse espaço é, no entanto, apenas uma nova versão dos espaços
sociais reais, essenciais para o estabelecimento de uma identidade humana.
Imperiosa condição
Acabo de participar, no 36º Encontro da Associação Nacional
dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), de um
Grupo de Trabalho sobre ‘sexualidade e gênero’, em que diversas comunicações
puseram em cena os mundos virtuais, do ponto de vista das fantasias sexuais ou
eróticas para ali transpostas e ali retrabalhadas e vivenciadas.
Do ponto de vista dos organizadores do grupo, trata-se de
uma coincidência imprevista; do ponto de vista da experiência social que cabe
aos antropólogos interpretar, trata-se de uma imperiosa condição: os desejos e
as fantasias eróticas, tão essenciais para a vida humana, encontram no espaço
virtual uma arena privilegiada para se desenvolver, já que podem circular em
uma esfera de trocas muito ampliada, em um gigantesco mercado de opções, com
altas garantias de anonimato e baixas exigências de dispêndio econômico.
Ana Paula Vencato tratou das mulheres que se relacionam com
crossdressers masculinos na vida real e que têm suas ambivalentes experiências
compartilhadas em redes virtuais; Laura Lowenkron explorou “a construção dos
marcadores corporais da menoridade em investigações policiais de pornografia
infantil na internet”; Débora Leitão apresentou sua pesquisa sobre “sexualidade
e mercado erótico no mundo virtual Second Life”; Carolina Parreiras tratou da
produção de pornografia alternativa na internet; e Weslei Lopes da Silva
discutiu as “representações e vivências do corpo feminino em interações sexuais
pagas no ciberespaço”.
Outros trabalhos não focados na internet, como o de Amaro
Braga Júnior sobre a ‘homoafetividade’ em quadrinhos japoneses, permitiram uma
comparação frutífera entre diferentes conjugações da fantasia erótica
contemporânea no Brasil.
Virtualidade e realidade
Muito se pode discutir as condições da pesquisa em tais
contextos: o acesso às redes e grupos; a ética da relação com os
interlocutores; a fluidez e impermanência dos círculos de interação; a
dificuldade de proceder a correlações entre as condições ‘reais’ dos sujeitos
plugados e as que são encenadas por seus avatares on-line.
Em outro nível de preocupações, o próprio estatuto da
‘virtualidade’ é muito discutível, já que as experiências desencadeadas nesse
meio são também ‘reais’ ao seu modo; no registro da relativização a que se
dedica a antropologia sobre a concepção de realidade característica de nossa
cultura.
Afinal de contas, a leitura de um romance, a realização de
uma viagem, a fruição de um concerto musical, a experiência de um ritual
religioso ou de absorção de um alucinógeno são todas elas experiências
fantásticas de efeitos imediatamente concretos, de máxima implicação para a
vida ‘real’ de cada um de nós.
A internet corresponde a uma nova dimensão de reverberação
de todos os desejos e de todas as fantasias formuláveis em nosso código
cultural
A internet corresponde, assim, a uma nova dimensão de
reverberação de todos os desejos e de todas as fantasias formuláveis em nosso
código cultural, com potenciais de realização em escala de massa e com algumas
propriedades singulares, que os estudos tentam discernir.
Novos horizontes de relação entre o público e o privado são
evidentes – e afetam particularmente as experiências eróticas. Também se
apresenta aí uma nova fronteira entre a sensibilidade corporal imediata e as
mediações intelectuais e cognitivas, o que desafia as convenções tradicionais
da satisfação do desejo e da atualização da fantasia.
E a própria fronteira entre a fantasia e a realidade pode se
refundir, como na criminalização da posse de imagens de pornografia infantil
num computador pessoal, estudada por Laura Lowenkron: um crime de fantasia numa
fervilhante galáxia de desejos.
Sugestões de leitura:
Leitão, Débora Krischke. Entre primitivos e malhas
poligonais: modos de fazer, saber e aprender no mundo virtual Second Life.
Revista Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n.38, jul/dez 2012.
Bell, Mark. Toward a definition of virtual worlds. Journal
of Virtual Worlds Research, vol.1, n.1, 2008.
Butler, Judith. The force of fantasy: feminism, mapplethorpe
and discursive excess. In: Cornell, D. (org.). Feminism and pornography. Nova
Iorque: Oxford University Press, 2000, p. 487-508.
Foucault, Michel. História da sexualidade I: A vontade de
saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
Miller, Daniel e Slater, Don. Etnografia on e off-line:
cybercafés em Trinidad.Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n.21,
p.41-65, jan/jun 2004.
Parreiras, Carolina. Altporn, corpos, categorias e cliques:
notas etnográficas sobre pornografia online. Cadernos Pagu, n.38, jan/jun 2012.
Disponível em
http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo/fantasia-e-desejo-nas-redes-sociais.
Acesso em 24 set 2013.