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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Substitutivo do Código Penal abandona proteção à opção sexual

Luiz Carlos dos Santos Gonçalves
8 de fevereiro de 2014

A comissão de senadores[1] constituída para examinar o projeto de novo Código Penal acaba de entregar suas conclusões à presidência daquela Casa. Dali, o texto seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça. Trata-se da segunda versão do substitutivo apresentado pelo senador Pedro Taques (PDT-MT) ao Projeto de Lei 236/2011, por sua vez originado de relatório da comissão externa de juristas, presidida pelo ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça. Ao analisar esta segunda versão, a comissão de senadores procedeu a significativas alterações, entre elas o expurgo de qualquer referência à identidade de gênero ou orientação sexual em crimes como o homicídio, as lesões corporais, tortura e o racismo.

Embora existam linhas de continuidade entre o documento agora aprovado e o anteprojeto da comissão de juristas, as diferenças são expressivas. Os senadores apreciaram cerca de 800 propostas de modificação que vieram de seus colegas, de deputados federais, professores, acadêmicos, estudantes e organizações da sociedade civil. Grupos organizados de pressão não faltaram, notadamente os pró-criminalização do aborto — onde estavam vocês, feministas? — e os defensores dos direitos dos animais.

A comissão de senadores organizou audiências públicas e ouviu não apenas pessoas favoráveis ao anteprojeto, mas também críticos acerbos, como Miguel Reale Junior e Juarez Cirino dos Santos. Aquela proposição trazia contornos liberais em temas como drogas, aborto e a proteção da vida, mas não foi surpresa constatar que teses conservadoras têm grande trânsito no Brasil, mesmo na comunidade jurídica.

O texto que será agora examinado pela CCJ do Senado é tecnicamente mais aprimorado do que o apresentado pela comissão externa, que atuou premida por prazo escasso. Supre omissões — como as relativas aos crimes de invasão de domicílio, remoção de órgãos e tecidos humanos e contra a biossegurança — e corrige inconsistências — como a mantença da arcaica definição de causalidade, atual artigo 13 do CP, ao lado da menção à criação ou aumento do risco juridicamente relevante. Redesenha as regras sobre a prescrição, aproximando-as do comum encontrado em legislações estrangeiras e reorganiza os crimes de falso e contra a administração pública. Inovações ousadas — como a barganha processual e a presunção de que o encontro de certa quantidade de entorpecente faria presumir um usuário, não um traficante — foram afastadas.

Houve a preocupação em tornar proporcionais as sanções previstas, ora aumentando-as em relação ao anteprojeto — por exemplo, no homicídio doloso, cujo mínimo era de seis e agora foi a oito anos de prisão — ora diminuindo-as — como nos maus tratos contra animais, de um a quatro anos no projeto 236/2011 e de um a três no substitutivo.

Diversas tipificações propostas pela comissão externa — bullying, eutanásia, crimes de guerra, omissão de socorro contra animais — não vingaram[2].

A despeito deste esforço, persistem aperfeiçoamentos a fazer[3] — como reconheceram os senadores Eunício Oliveira, Pedro Taques e Jorge Viana —, o que nem de longe empalidece a seriedade e qualidade do trabalho efetuado. A comparação do substitutivo com o vetusto Código Penal vigente — oriundo de períodos de exceção — e com o emaranhado de leis penais hoje existentes no Brasil é muito favorável à proposição.

O substitutivo apresenta homogeneidade ideológica, ao contrário do que se criticava no anteprojeto. Enquanto o texto da comissão de juristas procurava conciliar medidas de defesa social com redução de penas e novas causas extintivas da punibilidade, a norma in fieri direciona-se para o incremento da guarda penal de diversos bens jurídicos. As penas do furto simples eram de seis meses a três anos no anteprojeto e, no substitutivo, são de um a quatro anos; a figura básica do roubo, de três a seis anos passou para quatro a dez; a fração mínima para a progressão de regime naquele texto originário era de um sexto da pena, para a nova proposição é de um quarto. A extinção da punibilidade do furto, estelionato e apropriação indébita pela reparação do dano, se aceita pela vítima, foi excluída, assim como a redução de pena no roubo praticado sem violência real.

Daí não decorre, porém, que a codificação planejada não tenha tido o cuidado de prever inovações relevantes para o respeito aos direitos fundamentais, como dão notícia o artigo 41, parágrafo 4º — direito ao recolhimento domiciliar, se não houver vaga no sistema semi-aberto — e o art. 49 — restrição às revistas íntimas dos visitantes, direito à cela individual e, para o preso provisório, direito ao voto. A duração da medida de segurança teve limites fixados, art. 95, e aos índios foram estendidas, presentes certas condições, as regras do erro de proibição, art. 33. Manteve o sistema de progressão de regime, favoreceu as penas alternativas e disciplinou de modo interessante o regime aberto, com recolhimento domiciliar.
É certo que o substitutivo receberá a crítica de que preconiza respostas ilusórias — por exemplo, o aumento das penas e do tempo mínimo de seu cumprimento — para o severo problema da (in)segurança pública no Brasil. Dirão também que, se aprovado, a situação dos nossos superlotados presídios se agravará.

Seriam críticas imerecidas.

O espaço meramente legislativo para solução de dificuldades complexas relacionadas à criminalidade é de hialina insuficiência. Leis devem ser acompanhadas de medidas administrativas, sociais e educacionais, de acesso a moradia e saúde, transporte e saneamento básico, entre outros, com qualidade padrão... (como se chama mesmo, aquela entidade sediada na Suíça?). Nesse sentido, vejam-se as recomendações do “Relatório de Desenvolvimento Humano Regional”, divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD — em 2013[4].

Todavia, assim como leis mais gravosas não são a resposta, leis menos gravosas também não se saíram bem. Fala-se muito que a Lei dos Crimes Hediondos não diminuiu a criminalidade, olvidando-se de dizer que leis como a dos crimes de menor potencial ofensivo (9.099/95) ou a que ampliou a aplicação de penas alternativas (9.714/98) também não o fizeram. Não há vetores nessa constatação de que normas jurídicas, por si sós, por melhores que sejam, contribuem apenas um pouco para a solução de problemas sociais.

Quanto aos presídios, não há necessidade de código novo para que sejam constatadas as inúmeras, seguidas e permanentes ofensas a direitos fundamentais que eles têm propiciado. Cabe ao Poder Executivo dos estados e da União construir estabelecimentos penais dignos e suficientes: não são razoáveis, no particular, os contingenciamentos de recursos orçamentários. Escrevemos, em outra sede[5], que esta é uma das grandes falhas de infraestrutura do Brasil; é, certamente, a primeira da lista na indicação de nosso estado civilizatório.

Por igual, nada justifica a inexistência de defensorias públicas fortes, com meios suficientes para assegurar o acesso à Justiça e a defesa dos direitos dos processados e condenados. Ainda: leis penais, rigorosas ou não, jamais dispensam polícias treinadas e bem remuneradas, formadas numa cultura de respeito às liberdades fundamentais e merecedoras da confiança da população, um Ministério Público atuante e cioso de seu papel de acusador constitucional, um Poder Judiciário acessível e eficiente, etc.

Outrossim, o problema dos presídios não pode ser desvinculado da gravíssima situação da segurança pública em nosso país, infelizmente um dos campeões mundiais em crimes dolosos contra a vida[6], violências contra a mulher e roubos. O unilateralismo de concepções deslegitimadoras da intervenção penal, se adotado pelo poder público, será interpretado pela população simplesmente como mais uma omissão estatal. Não convém descurar dos riscos de que uma sociedade desesperançada com a violência busque fazer justiça com as próprias mãos. Infelizmente, existem exemplos recentes.

O caminho do meio é o melhor caminho para a legislação penal e o substitutivo o trilha. Procede a intensa descriminalização e reserva a pena de prisão, em regime fechado e semi-aberto, apenas para a criminalidade de elevado potencial ofensivo[7].

Nesta fase do processo legislativo cabe, sem embargo, sugerir ao Poder Legislativo que não esmoreça na adaptação do Código Penal às generosas previsões da Constituição de 1988. A mesma Constituição que lhe dá a inatacável legitimidade para fazer as leis — inclusive e especialmente, as penais — mostra-se vigorosa na defesa da igualdade entre as pessoas “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, art. 3º, IV.

Preocupa que todas as menções a identidade e orientação sexual tenham sido retiradas do projeto[8]. Elas estavam ali, ladeadas por idêntica tutela oferecida contra o preconceito em face da religião, da cor, raça, procedência nacional ou regional de alguém.

Esclareça-se que a norma projetada não considera crime “a livre manifestação do pensamento de natureza crítica, especialmente a decorrente da liberdade de consciência e de crenças religiosas, salvo quando inequívoca a intenção de discriminar ou de agir preconceituosamente”, art. 486, parágrafo 3º. Vale dizer: os púlpitos permaneceriam livres, protegidos, ademais, pelo art. 5º, VI, da Constituição[9]. Coisa muito diversa são condutas que negam direitos, ferem, torturam ou matam pessoas simplesmente porque elas se entendem e se comportam sexualmente de modo distinto do preferido por outros, sem lesar ninguém. Há plena dignidade penal na previsão e no agravamento das sanções, nesses casos.

Num Substitutivo que traz a elogiável previsão de crimes contra a humanidade, que combate a exploração sexual e a pedofilia, o trabalho em condições análogas a de escravo, o tráfico de seres humanos e o desaparecimento forçado de pessoas, esta lacuna destoa do objetivo de oferecer a máxima proteção aos direitos humanos.
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[1] Ela foi composta pelos senadores Eunício Oliveira, Presidente, Pedro Taques, Relator, Jorge Viana, Lídice da Mata, Ricardo Ferraço, Benedito de Lira, Aloysio Nunes Ferreira, Cicero Lucena, Magno Malta, Armando Monteiro, Eduardo Suplicy, José Pimentel, Ana Rita, Sérgio Souza, Vital do Rego, Eduardo Amorim e Osvaldo Sobrinho.
[2] Entre elas o “molestamento de cetáceos”, corretamente substituído pela vedação da pesca, art. 413. Sugere-se que o aumento de pena do parágrafo 2º — morte do animal — deveria ser reservado apenas à pesca em larga escala. O parágrafo 1ºdo art. 409 — promoção de confronto entre animais — poderia ser extinto, redefinindo-se o aumento de pena do § 2º para alcançar somente condutas habituais.
[3] De logo, além das mencionadas na nota anterior, podemos sugerir: i) a revisão do artigo 62, que fala em parcelamento da multa em 36 meses, solução distinta da constante no artigo 64 (60 meses); ii) a exclusão do parágrafo 4º do art. 38, que repete a regra do concurso de agentes, já constante do artigo 35; iii) a inclusão no rol dos crimes hediondos, art. 51, também do estupro e manipulação sexual de objetos contra vulneráveis; iv) os parágrafos segundo, terceiro e quarto do art. 43, deveriam estar no artigo 41, que fala na progressão de regime e não no 43, que cuida da regressão; v) a importante conduta do empréstimo vedado, art. 376, recebia mais clara definição no artigo 364 do anteprojeto e emula a dicção tortuosa do atual art. 17 da Lei 7.492/86; vi) a cláusula geral de aumento de penas do artigo 386 não condiz com as novas sanções dadas aos crimes financeiros pelo Substitutivo: um sexto a um terço seriam suficientes, em vez de metade até o dobro.
[4] As recomendações para a melhoria da segurança pública são: “ 1. Alinhar os esforços nacionais para reduzir o crime e a violência, incluindo um Acordo Nacional para a Segurança Pública como uma política de Estado; 2. Gerar políticas públicas para proteger os mais afetados pela violência e o crime; 3. Prevenir o crime e a violência ao promover o crescimento inclusivo, equitativo e de qualidade 4. Diminuir a impunidade ao fortalecer instituições de justiça com a adesão aos direitos humanos; 5. Promover a participação ativa da sociedade, especialmente das comunidades locais na construção da segurança cidadã; 6. Aumentar as oportunidades de desenvolvimento humano para os jovens; 7. Atender e prevenir de maneira integral a violência de gênero nos âmbitos doméstico-privado e público; 8. Salvaguardar os direitos das vítimas; 9. Regular e reduzir fatores que “desencadeiam o crime”, tais como álcool, drogas e armas, através de uma perspectiva integral de saúde pública; e 10. Fortalecer os mecanismos de coordenação e avaliação da cooperação internacional.” — http://www.onu.org.br/a-inseguranca-freia-o-desenvolvimento-na-america-latina-diz-relatorio-do-pnud/.
[5] Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, ano 7, nº 25, jan/abril de 2013, Ed. Fórum, Belo Horizonte.
[6] “Relatório de Desenvolvimento Humano-Regional – 2013-214”, PNUD. A taxa no Brasil, no período de 2007/2011 foi de 21 homicídios para cada cem mil pessoas. Só para comparar com países que exercem justa influência nos estudos doutrinários penais brasileiros, a taxa de homicídios na Alemanha e na Espanha é de 0,8 a cada cem mil habitantes. Em Portugal, 1,2.
[7] Diz o mesmo relatório do PNUD: “...a percepção dos cidadãos latino-americanos de “prisão como uma solução para os problemas de segurança” limita o progresso das reformas para reduzir a população carcerária, das medidas alternativas e do incentivo à reinserção social...”.
[8] Especialmente porque se decidiu vincular a tramitação do PLC 122 — crimes de homofobia — ao debate do novo Código Penal.
[9] “VI — é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Disponível  em http://www.conjur.com.br/2014-fev-08/luiz-goncalves-substitutivo-codigo-penal-abandona-protecao-opcao-sexual. Acesso em 10 fev2014.