Mostrando postagens com marcador Mauss. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mauss. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O sexo inventado

Maysa Rodrigues

Dentre os quarenta e seis cromossomos do mapa genético humano, apenas um diferencia biologicamente as mulheres dos homens. Entretanto, esse detalhe microscópico foi o suficiente para dividir quase toda humanidade em dois grupos que se interpenetram sem nunca perderem sua distinção básica. Muitos irão concordar que homens e mulheres são diferentes do ponto de vista de seus corpos, de sua constituição psicológica e do papel que ocupam na sociedade. Porém, na contramão da diferença, a Antropologia teceu ao longo do século passado uma tradição que desmonta muitas de nossas percepções mais fundamentais sobre os sexos.

Um cromossomo é formado de diversos genes, de forma que o que separa homens de mulheres é a combinação de alguns bocados dessas partes minúsculas. Ainda assim, para a Biologia, esses detalhes são responsáveis pela constituição de corpos diferenciados, compostos de uma maioria de órgãos em comum e de outros que seriam exclusivos a cada um dos sexos. Além da caracterização genética e anatômica, há também uma diferenciação hormonal - as mesmas substâncias, mas em quantidades diferentes nos homens e nas mulheres.

Se a Biologia propõe uma diferença física, a interpretação do senso comum se apoia em uma diferença de comportamento e de papéis. Acima de tudo, mulheres são possíveis mães - após serem fecundadas, nutrem, carregam e dão à luz a um novo indivíduo, que deverá receber atenção por boa parte de sua vida. A poesia e a literatura descrevem com adoração e reserva esses seres fantásticos que transitam entre a sensualidade e a maternidade. Já os homens também tiveram historicamente seu papel: fecundar e prover o sustento para a mulher e para seus descendentes.

É verdade que as funções para os dois sexos mudaram ao longo da história. Atualmente, principalmente na sociedade ocidental, boa parte das mulheres integra o mercado de trabalho, e muitos dos homens realizam funções domésticas e participam da criação dos filhos. Ainda assim, algumas expectativas parecem manter-se fixas. Mulheres que abrem mão da maternidade ainda são vistas com certo estranhamento. Da mesma forma, um homem sustentado por sua companheira dificilmente não causará algum constrangimento.

Negando os papéis sociais

Em um primeiro momento, negar a ideia de que homens e mulheres são essencialmente diferentes parece algo absurdo, justamente por essa ideia ter extrema aceitação pela ciência e pelo senso comum. Entretanto, a abordagem antropológica sugere uma nova interpretação a partir de trabalhos que estudaram a fundo outras sociedades (especialmente as ditas sociedades primitivas) e as variadas maneiras como essas culturas enxergaram a realidade.

Pierre Clastres, no capítulo "O Arco e o Cesto" de seu célebre livro A Sociedade contra o Estado apresenta a interessante cultura dos Guaiaquis. Nessa sociedade, assim como na nossa, as tarefas eram divididas entre homens e mulheres. Os primeiros se responsabilizavam pela caça, e as segundas, pela coleta e pelos constantes deslocamentos dos objetos pelo território, uma vez que se tratava de uma sociedade nômade. Sem adentrar profundamente em toda a rica análise que Clastres faz sobre as interdições ligadas aos sexos e às famílias, os Guaiaquis são importante para nosso tema porque trazem um exemplo de sociedade em que impera a poliandria, ou seja, a união da mulher com mais de um marido. Conforme sugere o autor, as mulheres Guaiaquis possuíam uma vantagem estrutural em relação aos homens: mesmo casadas, podiam ter relacionamentos com moços solteiros e transformá-los em maridos secundários se assim desejassem. Isso não significava que os maridos principais ficavam felizes, porém, esses não tinham muita escolha: se abandonassem suas esposas seriam condenados ao celibato, pois a tribo carecia de mulheres disponíveis. Já as esposas logo encontrariam outro marido, pois havia o dobro de homens em relação às mulheres.

Muito interessante na análise do autor é a ideia de que a desproporção numérica entre os sexos poderia ter sido solucionada por outros meios senão a poliandria. Seria possível que certos parentes considerados proibidos para o casamento passassem a ser permitidos. Também seria imaginável que houvesse um incentivo social ao celibato masculino ou que se admitisse o assassinato de recém-nascidos homens. De qualquer maneira, o modelo matrimonial verificado nessa tribo evidencia que dentre as infinitas possibilidades das culturas que já passaram pelo globo terrestre, os Guaiaquis são uma mostra de que o arranjo tecido pela nossa própria sociedade ao que diz respeito às relações entre homens e mulheres está longe de ser o único possível.

De forma ainda mais sugestiva para essa ideia, Margaret Mead*, em seu livro clássico Sexo e Temperamento, questiona as noções mais comuns dos papéis sexuais ao apresentar três sociedades na Nova Guiné. A autora toma como base o que considerou serem os padrões norteamericanos: o comportamento feminino seria caracterizado por ser "dócil, maternal, cooperativo, não agressivo e suscetível às necessidades e exigências alheias", e o comportamento masculino seria relativamente oposto a essa caracterização.

Tomando esses padrões como referência, percebemos que cada uma das três tribos apresenta comportamentos diferentes para homens e mulheres. Dentre os Arapesh, por exemplo, tanto os homens como as mulheres exibiam uma personalidade que seria considerada feminina na sociedade norte-americana. Já os integrantes da tribo Mundugumor eram homens e mulheres "implacáveis, agressivos e positivamente sexuados, com um mínimo de aspectos carinhosos e maternais em sua personalidade", apresentando um tipo de comportamento que, segundo Mead, só seria encontrado em um homem norte-americano "indisciplinado e extremamente violento". Tchambulli é a terceira tribo apresentada pela autora e se caracteriza por uma diferenciação entre os sexos e uma clara inversão das expectativas de temperamento de nossa sociedade: a mulher é "o parceiro dirigente, dominador e impessoal, e o homem a pessoa menos responsável e emocionalmente dependente".

Assim, a antropóloga chama nossa atenção para duas coisas. Primeiro para o fato de que é possível encontrar invertidos os comportamentos que nós estamos habituados para os sexos na nossa sociedade. Além disso, mostra a possibilidade de que as culturas não reconheçam uma diferença de temperamentos entre homens e mulheres. A partir dessa análise, ela conclui que "não nos resta mais a menor base para considerar tais aspectos de comportamento como ligados ao sexo", uma vez que "a natureza humana é quase incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a condições culturais contrastantes". Isso seria possível porque as crianças das diferentes tribos seriam passíveis ao ensinamento do comportamento corrente em sua sociedade, seja ele "feminino" ou "masculino" (do ponto de vista da sociedade ocidental) e esteja ele sujeito ou não a uma distinção entre homens e mulheres.

Assim, a antropóloga chama nossa atenção para duas coisas. Primeiro para o fato de que é possível encontrar invertidos os comportamentos que nós estamos habituados para os sexos na nossa sociedade. Além disso, mostra a possibilidade de que as culturas não reconheçam uma diferença de temperamentos entre homens e mulheres. A partir dessa análise, ela conclui que "não nos resta mais a menor base para considerar tais aspectos de comportamento como ligados ao sexo", uma vez que "a natureza humana é quase incrivelmente maleável, respondendo acurada e diferentemente a condições culturais contrastantes". Isso seria possível porque as crianças das diferentes tribos seriam passíveis ao ensinamento do comportamento corrente em sua sociedade, seja ele "feminino" ou "masculino" (do ponto de vista da sociedade ocidental) e esteja ele sujeito ou não a uma distinção entre homens e mulheres.

Nesse sentido, o argumento é interessante no que diz respeito à diferença entre homens e mulheres: muitas das características corporais que distinguem os sexos seriam constituídas a partir de um treino social do corpo. A delicadeza feminina; a postura imponente dos homens; o jeito discreto de sentar das mulheres recatadas; o largar-se confortavelmente no sofá, tipicamente masculino; ou então a maneira sensual feminina de andar movimentando os quadris são todos exemplos das chamadas técnicas do corpo propostas pelo autor.

Pierre Clastres » Antropólogo francês, Pierre Clastres nasceu em 1934 e faleceu, vítima de um acidente, em 1977. Castres integrou o Laboratório de Antropologia Social do Collège de France e deixou como principal legado o livro A sociedade contra o Estado, coleção de ensaios publicados em 1974 e considerado uma das obras-primas da antropologia.

O conceito de gênero

Mead, Mauss e Clastres, dentre outros autores, incutiram na tradição antropológica a ideia de que os papéis destinados a homens e mulheres não são explicados por uma diferença essencial inscrita na natureza de seus corpos. Ainda que sejam biologicamente diferentes, as peculiaridades anatômicas não explicariam as inúmeras outras diferenciações sociais entre os sexos: sejam elas de hierarquia, de status, de poder, de posição na divisão do trabalho, de personalidade, de comportamento e nem mesmo de seus trejeitos corporais.

Assim, se por um lado essa interpretação não nega radicalmente a perspectiva da diferença anatômica, afirma que a Biologia nada explica no que diz respeito à vida social. O argumento principal é que a natureza dos corpos é interpretada pela cultura que, por sua vez, origina inúmeros significados que transcendem as diferenças corporais.

A partir dessa rejeição à explicação biológica para as diferenças sociais, a Antropologia criou o conceito de gênero. "O foco da Teoria de Gênero é desconstruir a ideia de que existe uma diferença natural entre homens e mulheres que explique o que acontece nas sociedades", define Heloisa Buarque de Almeida, antropóloga especialista no tema e professora da Universidade de São Paulo. "Por muito tempo se dizia que as mulheres tinham menos poder ou que estavam restritas à esfera doméstica por causa da reprodução e da maternidade, ou seja, devido a elementos associados ao próprio corpo feminino. A Teoria de Gênero tenta mostrar que nem todas as sociedades tratam as mulheres dessa maneira", completa.

A professora explica que a origem do conceito de gênero estaria inicialmente associada às ciências médicas. "Gênero aparece na medicina nos anos 1950, no caso dos chamados distúrbios de gênero, como crianças que nasciam intersexuadas, ou seja, que tinham a genitália que hoje chamamos de ambígua, ou então pessoas que nasciam de um sexo e se diziam seres de outro sexo. Era usado quando a identidade do corpo da pessoa não combinava com aquilo que ela sentia sobre si".

Na Antropologia, apesar da impossibilidade de se traçar uma genealogia exata, os estudos atuais colocariam a antropóloga norte-americana Gayle Rubin como uma das precursoras do uso do conceito. "O foco de Rubin era mostrar que a relação entre os gêneros não deriva da natureza, pois é histórica, decorre de um arranjo social e tem um momento de fundação. Apesar disso, acaba aparecendo ideologicamente como naturalizada", explica Heloisa.

Margaret Mead » Doutora pela Universidade de Columbia e uma das grandes representantes do culturalismo, a antropóloga norteamericana Margaret Mead (1901-1978) publicou livros como Adolescência, sexo e cultura em Samoa (1928) e Sexo e temperamento em três sociedades primitivas (1935).

Debate com a biologia

Se parte dos estudos antropológicos afirmam que a explicação para a diferença social entre homens e mulheres só pode ser compreendida a partir do universo social que os permeia - sem, entretanto, negar que existam diferenças biológicas e anatômicas reais entre os sexos - outra parte radicaliza o argumento e nega a própria Biologia.

Nesse sentido, diversos estudos realizados nas Ilhas Trobriands representaram uma primeira aproximação, quase intuitiva, às teorias que desconstroem radicalmente a ciência. Considerado um dos principais fundadores da Antropologia, Bronislaw Malinowski intrigou-se no começo do século passado com a exótica interpretação que os trobriandeses faziam da gravidez e do intercurso sexual. Para essa tribo, o homem através da relação sexual que mantinha com a mulher não era responsável pela geração de crianças. A implementação do bebê no corpo materno seria realizada a partir de espíritos oriundos exclusivamente do lado da mãe, de forma que a função do pai era a de "abrir o caminho", ficando excluído da ascendência sobre o novo ser. Além disso, os homens trobriandeses eram considerados responsáveis pelo crescimento e pela fisionomia das crianças, que seria formada a partir das relações sexuais que mantivessem com as mulheres grávidas.

Essa interessante interpretação sobre a reprodução humana abre caminho para pensarmos que a partir dos mesmos fatos (intercurso sexual, gestação e nascimento) inúmeras explicações e relações entre causa e efeito podem ser desenvolvidas pelas culturas. Assim, a compreensão do nascimento como decorrente da gestação, e esta última como consequência do encontro entre os gametas femininos e masculinos durante o intercurso sexual, não é uma decorrência inevitável do pensamento humano, mas sim uma particularidade do pensamento ocidental.

Por volta de meio século depois das investigações de Malinowski, Michel Foucault promoveu uma das principais críticas no sentido da desconstrução da ciência. O autor levou a já exposta ideia de Marcel Mauss (de que as técnicas do corpo seriam constituídas de um treino social) ao extremo. Afirma que não apenas os movimentos corporais são construídos socialmente e incutidos nos indivíduos, como também o próprio corpo é construído politicamente.

Para ele, absolutamente nada existe anteriormente ou externamente ao discurso humano. Toda a suposta realidade concreta só seria concebida pelos indivíduos a partir do "saber", sendo que esse saber é entendido pelo autor como uma relação de poder que designa, nomeia e confere sentido a todas as coisas. Sua ideia central é a de que não existe uma "natureza natural", ou seja, uma realidade anterior ao saberes e aos discursos humanos. Um bom exemplo nesse sentido é pensarmos que o câncer é uma enfermidade que tem uma presença relativamente recente no léxico da medicina. Antigamente, as pessoas que hoje dizemos que morreram em sua decorrência, morriam porque estavam velhas ou simplesmente sem que se soubesse o porquê. Apenas a partir do reconhecimento da existência dessa doença pela comunidade científica é que o câncer passou a existir no linguajar e no pensamento das pessoas. Da mesma maneira, os sintomas que hoje interpretamos como doença de Alzheimer ou como outras demências degenerativas eram simplesmente sinais de velhice, sem possuírem um sentido particular.

O essencial que os dois exemplos pretendem sugerir é de que apenas quando há um reconhecimento na sociedade de que certo elemento tenha um determinado sentido, que isso passa a estruturar a vida social e fazer parte da interpretação comum. Além disso, o reconhecimento dos sentidos das coisas (e também o reconhecimento da existência das próprias coisas) se realiza por meio de uma relação de poder. Assim, o saber ou o conhecimento, para Foucault, é sempre permeado por uma força porque designa positivamente o sentido das coisas.

Até esse ponto, deve ser coerente dizer que a teoria do autor implica em uma profunda crítica ao sentido da ciência, uma vez que nega seu aspecto de saber absoluto, neutro e apolítico, enfatizando a questão do poder que envolve diretamente todo o conhecimento que existe. Para essa concepção, ciência não é um aparato de técnicas imparciais, que descobre a realidade externa, imutável e objetiva. Muito pelo contrário, o argumento de Foucault sugere que a realidade que nos aparece como objetiva é, na verdade, construída por um saber inundado de poder.

Nesse mesmo sentido, a medicina seria um saber institucionalizado que implica em um controle dos corpos dos indivíduos na mesma medida em que impõe o sentido desses corpos. Assim, podemos começar a pensar na natureza supostamente diferente dos corpos femininos e masculinos como uma ideia longe de ser natural.

Para ilustrar a concepção foucaultiana de ciência, Heloisa Buarque de Almeida explica como ao longo da história da medicina diversos aspectos do corpo humano foram responsabilizados por determinados comportamentos. "No final do século XVIII, como mostra a autora Magali Engel, o comportamento feminino é imputado aos ovários. Quando a mulher é vista como tendo alguma perturbação mental, como louca ou como promíscua, o protocolo é tirar os ovários, mesmo que aparentemente estivessem saudáveis".

Depois, conforme completa a antropóloga, o útero surgiria como o maior culpado pelos problemas emocionais, e a forma de tratamento mais comum para os chamados desvios mentais se tornaria a extirpação desse órgão. "Já por volta dos anos 1940-1950, ganha proeminência a ideia dos hormônios. Aparece na medicina que o comportamento chamado masculino é gerado pela testosterona, que passa a explicar a virilidade, tanto do ponto de vista da potência sexual, quanto de um comportamento agressivo e dominador dos homens. Essa visão também explica o comportamento mais afetivo e carinhoso das mulheres como sendo algo gerado pelos hormônios", desenvolve.

Hoje em dia, nem mais os hormônios e tão pouco os órgãos reprodutivos: a força explicativa da ciência estaria na ideia dos genes, que passa a ser a causa maior da diferença sexual. "Os médicos indicam aspectos biológicos como determinantes do comportamento, mas esse lugar da natureza parece estar sempre mudando", finaliza a antropóloga.

Na mesma trilha de Foucault, Thomas Lacqueur dá forma ao argumento do filósofo. Em seu livro Inventando o Sexo, o autor, a partir de um levantamento de manuais de medicina e de outros escritos do campo afirma que até meados do século XVIII havia uma concepção de sexo único, "no qual homens e mulheres eram classificados conforme seu grau de perfeição metafísica, seu calor vital ao longo de um eixo cuja causa final era masculina."

Assim, segundo esse modelo que imperou até não muito tempo atrás, homens e mulheres não eram considerados fisicamente diferentes. Sua diferença era apenas em grau (homens tinham maior calor vital e maior perfeição). Essa concepção se manifestava nos manuais de medicina de tal maneira que não era descrita nenhuma forma de distinção anatômica entre os sexos. A convergência também se exprimia no fato de haver uma mesma nomenclatura para os órgãos que hoje são considerados específicos de cada um dos sexos. Lacquer afirma que "durante milhares de anos acreditou-se que as mulheres tinham a mesma genitália que os homens", com a diferença de que a genitália feminina ficava dentro do corpo, enquanto que a masculina era externa. Os lábios vaginais eram considerados equivalentes ao prepúcio masculino, o útero era a mesma coisa que o escroto e os ovários seriam uma transposição dos testículos.

Impressiona na descrição de Lacqueur que essa maneira de conceber os corpos como iguais prevaleceu à prática da dissecação, evidenciando que não se tratava de um conhecimento baseado na impossibilidade de ser enxergar os órgãos, mas sim em uma forma de olhar e de interpretar o corpo diferente da que impera atualmente.

Também bastante revelador desse modelo de sexo único é a ideia de que sendo a diferença entre homens e mulheres apenas de grau e não de natureza, poderia haver uma mudança de sexo: "as meninas podiam tornar-se meninos, e os homens que se associavam intensamente com mulheres podiam perder a rigidez e definição de seus corpos perfeitos, e regredir para a efeminação". Lacqueur apresenta um relato médico do século XVI que atesta para a possibilidade de se transitar entre os sexos: uma pessoa identificada até então inquestionavelmente como menina passa a apresentar um "pênis e um escroto externo".

O caso que seria explicado hoje como um exemplo de intersexo (ou seja, de um indivíduo que possui o aparelho reprodutor ambíguo e que pode desenvolver novos órgãos na adolescência) foi considerado, naquela época, como a prova da possibilidade de mudança sexual. Essa anedota evidencia que, diferente do que normalmente pensamos, não é a simples visão dos corpos que condiciona a teorização que se fará sobre eles posteriormente; é o modelo corrente na sociedade que determinará a imagem que nossos olhos farão do que está em nossa frente.

No dia 13 de dezembro de 2010, faleceu a socióloga, professora e pesquisadora Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, reconhecida internacionalmente por seus estudos sobre as questões de gênero e direito das mulheres. Professora da Unesp e da PUC -SP, Heleiteh Saffioti publicou o livro Gênero, Patriarcado e Violência (Fundação Perseu Abramo, 2004) .

Um mundo pós-gênero?

A filósofa Judith Butler em sua obra Problemas de Gênero, agrega aspectos do pensamento de Foucault e de Lacquer para afirmar que gênero é sempre um ato performativo, que se constitui apenas nas o feminino e o masculino. Assim, travestis e drag queens evidenciariam a natureza performática do feminino e sua artificialidade, inclusive nas mulheres.

Para a autora, se gênero é performance, longe de se desenvolver livremente, é regulado por uma matriz que pressupõem coerência entre o sexo biológico, as atuações de gênero, o desejo e a prática sexual. Assim, pessoas com a genitália feminina devem ser mulheres que têm desejo por homens e que devem manter relações sexuais e afetivas exclusivamente com o sexo oposto.

Além disso, não seria possível em nossa sociedade a inexistência de qualquer performance de gênero pelos indivíduos, uma vez que o pensamento ocidental, além de incapaz de aceitar as descontinuidades e incoerências provenientes das subjetividades que não se adéquam à norma, também seria inábil em parar de localizar os sujeitos em relação às opressoras categorias de feminino e masculino. Assim, mesmo que os indivíduos subvertam alguns aspectos dessas regras, ainda estariam se posicionando em relação a elas.

Apesar da visão antropológica que propõe uma igualdade radical entre os sexos, Butler parece apontar para uma dificuldade em nos desvencilharmos das categorias de gênero, que seriam ordenadoras de nosso pensamento. A persistência se afirma em um mundo que, ao mesmo tempo em que muda, continua reiterando as barreiras entre homens e mulheres.

Ainda assim, mesmo que a crítica da Antropologia não implique em uma verdadeira libertação das amarras mais profundas em relação aos papéis de gênero - tão pouco no fim da opressão das subjetividades humanas dissidentes e na aceitação das múltiplas formas de sexualidade -, a disciplina fornece, certamente, um intenso estímulo ao nosso pensamento e à nossa capacidade de conceber um mundo diferente daquele que se apresenta aos nossos olhos, especialmente a partir do contato com outras realidades culturais que nos maravilham com suas vastas possibilidades.

Judith Butler » Filósofa norte-americana e professora da Universidade de Berkeley, contribuiu decisivamente para os estudos sobre gênero e teoria feminista. Seu livro Problemas de Gênero é tido como uma obra fundamental sobre a questão. É desde 2007 integrante da American Philosophical Society.

O contraponto da psicanálise

As teorias antropológicas sobre gênero em alguns momentos concorrem e em outros se completam com as perspectivas de outros campos do saber como, por exemplo, o da História, o da Filosofia, o da Psicologia e o da Psicanálise. Esta última oferece uma série de reflexões sobre a formação da personalidade, inclusive em sua interface com o gênero. Em uma conversa com a psicóloga e psicanalista Magdalena Nigro, professora do curso de especialização em Sócio-Psicologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, tentamos nos aproximar da teoria psicanalítica:

Homens e mulheres são diferentes do ponto de vista psicológico?
Cada ser humano possui uma estrutura de personalidade própria. Segundo Freud, essa estrutura é composta pelo "id", "ego" e "superego". O "id" é o domínio da pulsão, do desejo. Porém, a realidade impõe limitações à satisfação do desejo, por exemplo, por meio das experiências de espera. Dessa maneira, do confronto do "id" com a realidade forma-se o "ego", que inicialmente é algo corporal e depois se torna uma estrutura psíquica. Já o "superego" é uma consequência do Complexo de Édipo e introduz a lei na vida da criança. Porém, a estruturação da personalidade ocorre de forma única em cada sujeito. Assim, as diferenciações de gênero aparecem ao longo do desenvolvimento do sujeito, em função desse processo de estruturação da personalidade.

Então, não nascemos sujeitos com gênero. Há um processo que causa essa diferenciação?
Nascemos com diferenças anatômicas. O corpo do homem e o corpo da mulher são diferentes. Mas a identidade de gênero, masculina ou feminina, é algo que no entendimento da psicanálise vai sendo construída ao longo do tempo, como consequência das vivências do sujeito na vida familiar e social.

Como as teorias psicanalíticas entendem o processo dessa diferenciação?
O bebê quando nasce recebe um nome de mulher ou de homem, segundo seu sexo biológico. Dessa forma será identificado como sendo do sexo feminino ou masculino. Porém, a identificação sexual e a identidade de gênero serão constituídas a partir das identificações, fundamentalmente, com o pai e com a mãe. Imitando o pai ou a mãe, brincando de professor/a, médico/a, etc., o menino e a menina ingressam no universo do feminino e do masculino por meio da identificação com essas figuras. No final do complexo de Édipo, a menina se identifica com a mãe, como mulher, e o menino com o pai, enquanto homem. Assim, projetam-se no futuro, para fora de sua família original, como homem ou mulher, iniciando seu caminho para a feminilidade ou masculinidade.

REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: CosacNaify, 2007.
MAUSS , Marcel. "As técnicas do corpo". In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: CosacNaify, 2003.
MEAD , Margareth. Sexo e Temperamento. São Paulo: Perspectiva, 2000.


Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/edicoes/33/artigo208724-1.asp. Acesso em 25 jul 2013.