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sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Universo infantil moldado

Diana Levcovitz; Adriana Maimone Aguillar

A o refletir sobre o corpo da criança, poderíamos levar em consideração inúmeros aspectos. Existe, atualmente, um número expressivo de pesquisas realizadas sobre a obesidade infantil, especialmente em crianças de classe média, associando o distúrbio a hábitos sedentários, tais como as práticas de jogar video-games, assistir televisão, navegar na Internet, à falta de atividades físicas nas escolas, como a expressão corporal, os esportes, a dança ou o teatro. Alia-se a isso a alimentação inadequada, mesmo em crianças das classes populares, ou a falta de um padrão alimentar. Outro aspecto seria a questão da violência corporal que inclui maus tratos por parte dos pais ou responsáveis, familiares, adultos e até adolescentes. Poderíamos falar da questão das brincadeiras de rua, cada vez mais escassas, e que, em outros tempos, favoreciam um corpo em movimento. Hoje, quando se fala em questão das brincadeiras de rua, cada vez mais escassas, e que, em outros tempos, favoreciam um corpo em movimento. Hoje, quando se fala em criança de rua, queremos fazer referência a meninos abandonados e não a crianças brincando nas ruas; são os valores que se invertem.

Para este ensaio nos restringiremos à pedagogização do corpo infantil

Ainda temos as questões de sexualidade, de gênero, de raça e de etnia. Como são vividos e pensados estes aspectos com relação ao corpo da criança?

Falar do corpo da criança implica, necessariamente, falar de vários corpos e, até mesmo, de várias infâncias. Ou, talvez, devamos especificar a que corpo e a que infância estamos nos referindo. Nos séculos XVI e XVII, tanto a noção de infância como a noção de corpo, eram totalmente diferentes daquela que possuímos atualmente. Algumas pessoas poderão se assustar ao ler as páginas do diário de Heroard, médico de Henrique IV, no qual anotava alguns fatos da vida do jovem Luís XIII. Philippe Ariès descreve algumas passagens deste diário no livro História Social da Criança e da Família, onde podemos perceber claramente as distinções de comportamento. São descritas situações nas quais brincadeiras sexuais eram realizadas sem a menor vergonha ou pudor: “Luís XIII tem um ano: ‘Muito alegre’, anota Heroard, ‘ele manda que todos lhe beijem o pênis.’ Ele tem certeza de que todos se divertem com isso. Todos se divertem também com sua brincadeira diante de duas visitas, o senhor de Bonnières e sua filha: ‘Ele riu muito para (o visitante), levantou- lhe a roupa e mostrou-lhe o pênis, mas, sobretudo à sua filha; então segurando o pênis e rindo com seu risinho, sacudiu o corpo todo.’As pessoas achavam tanta graça que a criança não se cansava de repetir um gesto que lhe valia tanto sucesso.” (ARIÈS, 1981, p.126)

Consideramos interessante ressaltar essas descrições apenas como ilustração para a compreensão da maneira como a concepção de corpo assim como a de infância se transforma no decorrer dos tempos.

Gênero e a teoria Queer
Queer é uma palavra inglesa e significa estranho, excêntrico. Mas também é a forma pejorativa de se referir a homens e mulheres que se interessam por pessoas do mesmo sexo. A filósofa norte-americana Judith Butler manteve o termo para que, por meio do deboche, pudesse reinvidicar para os estudos, e para a militância de uma forma geral, um caráter de contestação. O termo, dessa forma, passou a designar tudo (pessoa ou coisa) que assume posição contra qualquer tipo de normatização. A teoria queer nasceu de estudos feministas nos anos 90, sob influência do pensamento de Foucault, especialmente no diz respeito à forma como o poder se relaciona com a identidade. Basta lembrar que nas últimas décadas do século XX, as feministas foram as primeiras a questionar que uma identidade universal (no caso, a branca e masculina) devesse servir como fundamento único para o pensamento e para a ação política. Alardearam a necessidade de levar em conta a diferença, lembrando que raça, etnia, classe, gênero e sexualidade são categorias que interagem e produzem um amplo espectro de identidades que são mutáveis e resistentes a definições rígidas. Dessa maneira, ao compreenderem a noção de categorias transhistóricas, tais como: mulher, homem, homossexual, etc, muitos acadêmicos assumidamente feministas e gays desenvolveram trabalhos de teoria queer como uma nova forma de pensar as políticas de gênero e de sexualidade. Convém ser ressaltado que, enquanto a teoria produzida desde estudos gays ou lésbicos examina diferentes identidades, a teoria queer examina as diferenças para minar a própria noção de identidade.

“Correr, para nós, é como andar a cavalo, galopando, competindo com o vento. Não se sabe nada, não se pensa, não se lembra de nada, nada se vê, apenas sente-se a vida, uma vida plena.” (Janusz Korczak, Quando eu voltar a ser criança, p.29)

MICHEL FOUCAULT, em História da Sexualidade I, A Vontade de Saber, opõe dois conceitos ao estudar os discursos produzidos sobre o sexo. Um deles era a scientia sexualis ou, dito resumidamente, um conjunto de saberes sobre o sexo como discurso médico, cientificista, baseado na biologia evolucionista da reprodução. Outro conceito , a ars erotica, era um conjunto de saberes nascidos das práticas culturais, algumas milenares, da Grécia e da Roma clássicas, da Índia e da China, que buscavam saber sobre o sexo para ampliá-lo. No ocidente vingou o primeiro tipo de saber, tendo na confissão religiosa sua principal fonte de discursos. Posteriormente, a confissão religiosa daria lugar à Pedagogia e à Medicina. Quando o filósofo elabora o conceito de dispositivo da sexualidade, o faz levando em conta estratégias globais de dominação. Para este ensaio, entretanto, nos restringiremos a uma delas: a pedagogização do corpo da criança. Não foi simplesmente proibido falar de sexo, mas, por meio da Pedagogia, produziram-se formas exatas e corretas de se falar sobre o sexo, ou seja, uma legitimação dos discursos sobre o assunto, acompanhada de uma forma correta de se utilizar os corpos, mediante discursos específicos sobre o corpo.

A chamada “sociedade disciplinar” (termo cunhado por Michel Foucault que se refere a cada um em uma instituição cujo objetivo é o controle e a produção dos corpos), com seu modelo de repressão, impedia que se falasse do corpo. Atualmente, na “sociedade de controle” (descrita por Gilles Deleuze no livro Conversações, o qual a sociedade abole fronteiras, mas não o controle) , ainda que a repressão não tenha sucumbido de todo, vivemos experiências contrárias a ela. Nas palavras de Lins e de Gadelha (2002, pp.171-172) “(...) superexcitam-se os corpos (...) configurando um corpo ágil, animado, hiperacelerado. (...) Segundo Nietzsche, é sempre sobre a superfície dos corpos que incide qualquer ‘educação’.”

Quando falamos de infância e de corpo caímos certamente em questões acerca da educação, seja aquela oferecida pela escola, seja a oferecida pelos pais ou seus responsáveis.

Família e escola foram instituições responsáveis pelo ensino de cuidados individuais com o corpo

PARA COMPREENDERMOS aspectos relativos aos corpos das crianças devemos levar em conta a maneira como nele estão inscritos alguns imperativos históricos e culturais.

A partir disso, é possível afirmar que a criança, antes mesmo de nascer, já está inserida num complexo de sentidos que lhe é dado pelas instituições que a aguardam. Querendo ou não, ela carrega em seu corpo uma espécie de narrativa que seus antepassados e mesmo seus contemporâneos veiculam. E isso vale tanto para a criança que habita um grande centro urbano quanto para aquela que vive em uma pequena aldeia e pertence a um povo indígena. Entretanto, ela é um ser capaz de experienciar a vida de maneira intensa, diferente do adulto. A criança tem inventividade para transformar o que vê e o que descobre e, junto com seus pares, produz cultura. Efetuar esse entendimento demanda uma compreensão da história, da geografia e da cultura que atuam na direção da construção de um corpo que possui características próprias. Para isso, algumas perguntas se impõem: como é vista a sexualidade na infância? E quanto à questão de gênero, existe alguma diferença no trato dos meninos e com as meninas? As crianças negras, ou de diferentes etnias, como são tratadas?

“Lembro-me de uma surra que um colega levou. Foi o professor de caligrafia que o castigou. (...) Tive muito medo então. Parecia-me, que, assim que acabassem com ele chegaria a minha vez. E senti muita vergonha, pois o garoto foi castigado nu.” (Janusz Korczak, Quando eu voltar a ser criança, 39)

Família e escola têm-se constituído historicamente como instituições de referência para se entender e informar o que vem a ser a criança. Podese dizer que foram as instituições responsáveis pelo engendramento da individualização, ensinando e exigindo ao longo do tempo, o cuidado sobre o corpo em seus mínimos detalhes. Foucault, em entrevista à revista Quel Corps? em junho de 1975, afirmou que tal movimento de individualização propiciou a possibilidade de se perceber no corpo beleza, capacidade e habilidades. E isso só foi possível dentro de um processo de educação meticuloso e sistemático, levado adiante coletivamente. Fez-se necessário um investimento no corpo, uma produção de padrões de disciplina e de destreza, de higiene, de “boa” postura, e mesmo de etiqueta, de retórica e de apreciação do belo. Dessa maneira, as crianças, à semelhança de soldados, eram investidas de um modelo de corpo poderoso e saudável, adepto da ginástica, da nutrição balanceada, das horas de sono restauradoras etc. Paralelamente, refinaram-se os saberes e diversas disciplinas acreditaram poder explicar os funcionamentos e, os alcances e a formação de um corpo modelar. A Medicina, com a Fisiologia e a Psiquiatria, seria um exemplo disso. “(...) Mas, a partir do momento em que o poder produziu este efeito, como conseqüência direta de suas conquistas, emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor. E, assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por que ele é atacado... O poder penetrou no corpo, encontra−se exposto no próprio corpo... (...)” (Foucault, revista Quel Corps?, junho de 1975)

Não é possível afirmar que a disciplina, na escola, tenha sido banida de todo

NESSE SENTIDO, o corpo da criança, como o do adulto, passa a ser positivado. Ainda que, na casa ou na escola, seja muitas vezes desencorajado a se mover e a falar, esse mesmo corpo recebe paparicação, aprende a sociabilidade da negociação e inventa esconderijos para suas pequenas descompressões. Não se trata, enfim, de um corpo genérico, mas de um corpo produzido socialmente, culturalmente.

Nas relações entre os corpos das crianças e dos adultos estão presentes relações de poder. Melhor dizendo, em qualquer tipo de relação entre pessoas (criança-criança; adultoadulto e criança-adulto) o poder está presente. E isso ocorre em nome de uma disciplina, de uma docilização. Isso pode ser percebido facilmente no poder da mãe sobre a constituição do paladar na criança, ou nas horas de sono “criadas” para esta.

NA SOCIEDADE disciplinar característica do século XVIII, a cada um era destinado um lugar: a caserna, a fábrica, a escola, o manicômio, o prostíbulo. Dessa maneira, os corpos eram vigiados constantemente e as ações humanas executadas de acordo com ordens superiores. A escola surgiu, dessa maneira, como instituição disciplinar por excelência. Nos dias atuais, entretanto, não é possível afirmar que a disciplina, na escola, tenha sido banida de todo. Exemplo disso são estudos que constataram que, por ser o momento do recreio o da movimentação livre, os professores o suprimem como forma de punição aos desobedientes. Ademais, ao analisarem mudanças ocorridas na escola, alguns autores chegam a afirmar que a indisciplina e a violência nesse espaço podem ser vistas como efeito de uma transformação na sociedade. O que se tem, na verdade, são resquícios da “sociedade disciplinar” sobrevivendo a outro tipo de sociedade, ou seja, a “sociedade de controle”. Nesta, os espaços de trabalho e de estudo, por exemplo, não aparecem tão bem definidos, e não existe mais uma vigilância constante sobre as pessoas. O controle é exercido “a céu aberto”, de uma maneira tão branda que dificilmente é reconhecido como tal. Outros exemplos da “sociedade de controle” são os telefones celulares, a Internet, o GPS, a senha digital, as câmeras de segurança, enfim, facilidades que o homem contemporâneo raramente questiona como invasivas, por conta do proveito que delas tira. O controle, dessa maneira, parece perder sua origem institucional para se exercer no nível pessoal.

O controle é exercido “a céu aberto”, de uma maneira tão branda que dificilmente é reconhecido como tal

Uma oportunidade que as crianças inventam para relaxar do controle disciplinar é inserir a sexualidade nas brincadeiras. Esse é um assunto que provoca incômodo em casa e na escola e torna-se visível nas ações “inocentes” impregnadas de excitabilidade e agressividade das crianças. Sendo elemento tão constante na vida de todos, a sexualidade manifesta- se na criança também como vontade de saber, de descobrir, de experimentar poder.

De uma maneira mais extensa, a sexualidade indica também a maneira como o indivíduo sente, percebe, e lida com a genitalidade. Esse conjunto de experiências carrega significados que são partilhados em diferentes culturas e em determinados momentos de suas histórias. Apenas para ilustrar, o que no Brasil contemporâneo é considerado incesto não o é, por exemplo, numa tribo da Polinésia francesa no século XVII. Ou mesmo a masturbação que, em tempos bíblicos, recebeu a conotação de imoralidade pelo fato de, nas práticas masculinas, a ejaculação resultar desperdício de esperma essencial para a reprodução.

“Vocês pensam, quem sabe, que nós também batemos um no outro. Mas nossas mãos são pequenas e temos pouca força. E mesmo quando estamos com uma bruta raiva nunca batemos para machucar. Vocês não sabem como são as nossas brigas.”(Janusz Korczak, Quando eu voltar a ser criança, p. 106)

Ao afirmar que há diferentes formas de se viver a sexualidade e de se organizar afetivamente, Miskolci (2005) lembra que diversos tipos de arranjos familiares se constituem a todo tempo, no mundo todo. Basta lembrar que a família chamada de ”tradicional”, isto é, composta de pai, mãe e filhos, tem dividido a cena social com famílias em que só um adulto cuida da criança, com famílias cujo casal parental é homoerótico, e outras mais. Em tempos de reprodução assexuada, vale lembrar que a heterossexualidade, antes definição de padrão de normalidade em matéria de escolha ou orientação sexual, é apenas mais uma – embora majoritária – no universo de possibilidades de vivência afetiva e erótica. Em outras palavras, ser heterossexual não é sinônimo de ser normal, pois quem tem outra orientação sexual não é imoral, indecente ou anormal.

Autores defendem que novas questões de gênero devem considerar a inversão do pólo referencial

“DANÇA É COISA DE MENINA”; “Azul pros meninos, rosa pras meninas”; “Chorar é pra mariquinha”. Quando uma criança, espontaneamente, faz afirmações como essas chegamos a achar natural que ela separe o mundo em duas categorias e que, com base nelas, ordene seu saber e seu querer. Porém, não se falam coisas espontaneamente, mas a partir de idéias, crenças, costumes que nos acompanham desde o nascimento. E, no mundo da linguagem, dificilmente haverá algo natural. Sabe-se que a natureza não equipou os corpos com idéias, crenças e falas; elas foram sendo engendradas nas pessoas de muitas formas, desde as relações de troca até o simples ensinamento. Afirmações como essas e tantas outras que separam meninas e meninos foram produzidas muito antes que a criança sequer se posicionasse sobre elas.

ATITUDES DO ADULTO muitas vezes conduzem a criança a formar para si uma noção de gênero, de sexo e de identidade num sentido mais amplo. Isso pode ser percebido não apenas na casa ou na rua, mas, também, nos chamados equipamentos coletivos de educação. Alguns autores brasileiros, como Louro (2003) e Miskolci (2005), defendem que novas questões surgidas a partir dos estudos sobre gênero devem levar em conta o risco de se inverter o pólo referencial, substituindo o homem - branco, ocidental, heterossexual, de classe média - da cena hegemônica pela mulher perpetuando, assim, uma polarização que é típica do binarismo conceitual. No campo da pesquisa histórica, Goellner (2003) mostrou ser possível traçar o percurso das práticas de atenção ao corpo, com a saúde e a higiene representando o “cuidado de si”, tanto quanto as modificações sofridas ou realizadas ao longo dos séculos. Autores estrangeiros, especialmente Butler (2005) acrescenta a essas preocupações a teoria queer afirmando que, ao longo do tempo, foi construído também um discurso que legitimou as diferenças de gênero. O resultado disso, no longo prazo, foi a instituição do heterossexualismo compulsório. Em outras palavras, para que a função reprodutiva tida como natural fosse garantida, alinharam-se, obrigatoriamente, o sexo, o gênero e o desejo (veja texto O que é a teoria queer?).

“As crianças são rápidas porque sabem deslizar entre.” (Diálogos, Deleuze; Parnet, 1998, p. 42)

Etnia, do conceito à reflexão
O conceito de etnia, Munanga lhe atribui uma conotação política, dada sua característica dinâmica. Segundo ele, etnia descreve um conjunto de seres humanos que, em um determinado tempo, falam uma mesma língua, professam uma religião ou acreditam em um mesmo ancestral e partilham uma visão de mundo. Formam, assim, uma cultura que ocupa um determinado território. Talvez se possa acrescentar que o conceito também abarca culturas que estão em busca de um território, a exemplo de muitos povos indígenas do Brasil, dos judeus e palestinos na Faixa de Gaza, dos bascos na França e na Espanha. “Ao mesmo tempo em que nossa miscigenação e pluralidade étnica se transformam em magníficas metáforas e alegorias literárias, negros, índios e mestiços vivem a mais brutal discriminação em todos os lugares em que vivem, seja no campo ou nos centros urbanos. Estranho jogo esse em que os diferentes são, a um só tempo, objeto de exaltação e de exclusão.” (Gonçalves; Gonçalves e Silva, O Jogo das Diferenças, p.14). Até nos livros escolares, particularmente nos do ensino fundamental, o tema é revestido de um romantismo que coloca os índios em um passado idílico, aprisionando-os em um imaginário de beleza, ingenuidade e falta de futuro. Nas escolas, políticas de afirmação de etnias ou inexistem ou são apagadas. É urgente, insistem esses estudiosos, que se estude a conduta da sociedade em relação às diversas etnias, verificando que apoio recebem quando resistem ao processo de globalização que, em larga medida, se coloca como eurocêntrico e hegemônico.

Ao contrário do gênero, para muitos, a diferença entre raça e etnia não é tão explícita. Ao orientar a discussão sobre o tema, Munanga (2003) diz que, enquanto o conceito de raça se refere as características físicas - formatos de rosto, de nariz, tipos de cabelo, diferentes graus de concentração de melanina - o conceito de etnia procura localizar os grupos humanos desde uma perspectiva histórica, simbólica e psicológica.

Componentes educacionais devem ser projetados e executados levando em conta as diferentes identidades

A PESQUISA NACIONAL por Amostra Domiciliar (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1999, concluiu que a população brasileira negra era de 45,5%. Apesar de tal constatação, o que se vê, cotidianamente, é a negação da contribuição da raça negra para a formação cultural do País. Uma explicação para esse apagamento é dada pelo mito da democracia racial, segundo o qual a sociedade brasileira vive em harmonia, respeitando mutuamente os direitos das diferentes raças. Na realidade, existe um padrão sobre o qual se busca adequar a diferença racial, que por vezes abertamente, conduz o ideal de beleza, de cultura, de bom gosto, de verdade, ao modelo eurocêntrico, isto é, branco – preferencialmente do hemisfério norte – cristão e masculino.

“Os adultos ficam espantados quando nos vêem brigando; e, no entanto, somos solidários entre nós. Pois é, existem dois grandes times: os adultos e as crianças.” (Janusz Korczak, Quando eu voltar a ser criança, p. 212)

NO QUE DIZ RESPEITO à criança, desde uma perspectiva de coletivo, a escola é um espaço que deveria acolher e promover diferenças. Abramowicz e Silvério (2006) alertam que, para isso acontecer na prática, ela deve se orientar por uma equalização na qualidade do atendimento que oferece. Os serviços, as instalações e os equipamentos, o currículo, a formação de pessoal, e tantos outros componentes educacionais devem ser projetados e executados levando em conta as diferentes identidades. Não se trata de premiar um segmento da sociedade em detrimento de outro, mas privilegiar atitudes voltadas para a valorização das diferenças étnico-raciais (veja quadro Etnia, do conceito à reflexão).

A conclusão que chegamos é que cada criança traz uma singularidade, uma história, uma vida, experiências particulares. Traz também sentidos dados pela cultura e orientações passíveis de negociação no plano das relações cotidianas. Perceber cada singularidade, revelar as possíveis expressões de racismo e preconceito e trabalhar com essas questões presentes nos espaços coletivos, este é o desafio colocado ao adulto, na casa, na escola, na rua, na mídia. Cada uma destas instituições pode se atribuir a tarefa de buscar novas possibilidades de propiciar à criança ou a apoiar em relacionamentos com os outros, com o conhecimento, favorecendo assim a criação de si e do outro.



Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/edicoes/17/artigo92056-1.asp. Acesso em 14 out 2013.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Questões de gênero: implicações para uma diversidade sexual

Maria Cherubina de Lima Alves et al
Revista da Católica, Uberlândia, v. 4 n. 7, 2012

Resumo: A padronização dos papéis de gênero assumidos pelos indivíduos ao longo do tempo não deveria ser uma prática aceita, cabendo à sociedade compreender que a possibilidade de expressar a diversidade que se manifesta ao longo de seu processo de desenvolvimento psicossocial é para o indivíduo sinônimo de liberdade e respeito em seu processo de inserção na família, na sociedade, no espaço de trabalho e de formação profissional.


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A reconfiguração da família e as novas formas de ser do lar

Ádima Domingues da Rosa

O trecho da famosa música Pais e Filhos, da banda de rock Legião Urbana, sintetiza, em uma ótica estética, muitas das transformações sociais pelas quais a instituição familiar contemporânea tem atravessado. "Eu moro na rua, não tenho ninguém, eu moro em qualquer lugar, já morei em tanta casa que nem me lembro mais, eu moro com meus pais". Essa mensagem demonstra com sutileza e claridade o sofrimento dos filhos que são muito afetados pela separação dos pais, fato que tem se tornado cada vez mais comum, conforme apontam os dados do IBGE .

No entanto, esse rearranjo da família atual não pode ser negado e deve, inclusive, ser celebrado como uma transformação positiva nos padrões e nas relações afetivas, rumo às vivências mais plurais e democráticas. A sua aceitação é fonte destacada de reflexão social e implica ainda a necessidade de se repensar a elaboração de políticas públicas.

Com as grandes transformações observadas nas últimas décadas no campo da sexualidade, da afetividade e das dinâmicas sociais, a família nuclear, heterossexual, não deve ser mais tida como o modelo único, ou mesmo o padrão referencial, mas apenas como mais uma forma de arranjo familiar. Afinal de contas, o número de mulheres e homens que coordenam sozinhos seus lares junto com os seus filhos é altíssimo. Além disso, cresce a percepção social de que é fundamental reconhecer o direito de casais homossexuais de constituírem uma família e terem filhos.

Neste quesito, as políticas públicas brasileiras são avançadas, pois refletem a família a partir de sua função, levando em consideração a solidariedade entre seus membros, o desencadeamento das relações entre eles e a importância no desenvolvimento que cada indivíduo exerce sobre o outro. Não há e não deve haver qualquer juízo de valor acerca de qual a orientação sexual "ideal" dos cônjuges. Ao contrário, deve existir apenas um reforço no papel da família como instituição central para a proteção social.

É fundamental reconhecer o direito de casais homossexuais de constituírem uma família e terem filhos

Essa visão de família não unilinear está substanciada tanto na realidade quanto em diversos documentos governamentais, principalmente aqueles voltados à assistência social, onde o apoio, a orientação e a manutenção da família constituem a prioridade. Mas não é aquela família "quadradinha", que muitas vezes imaginamos à luz de preconceitos e visões heteronormativas do mundo.

As políticas públicas atuais levam em consideração modelos diferenciados de famílias, partindo do pressuposto de que as mulheres ganharam não apenas a sua independência financeira, mas também a de seus destinos, passando a coordenar as suas famílias, sem receios de fracasso, porém muitas vezes enfrentando o preconceito da sociedade - situação comum também aos casais homossexuais.

Neste caso em particular, nos parece que, muitas vezes, as concepções das políticas públicas compreendem um nível avançado até de absorção de novos padrões comportamentais. Mas, no âmbito das dinâmicas cotidianas, as relações caminham a passos lentos e nem sempre percorrem o mesmo caminho das legislações. Em alguns casos, porém, a legislação parece bastante retrógrada, principalmente quando observamos a dificuldade de adoção de filhos por parte de casais homossexuais.

Quando isso ocorre, se transforma em notícia nacional, num acontecimento que "está para além desta sociedade", pois parece ofender os valores de setores conservadores da sociedade, sobretudo os religiosos. É utilizando esse tipo de exemplo que podemos perceber com mais clareza o quanto a sociedade como um todo é preconceituosa, o quanto idealizamos um tipo de família heterossexual, em que o pai exerce o papel de coordenador do lar. O enfrentamento a essa dominação masculina e heterossexual da instituição familiar serve de bandeira para diversos movimentos sociais, tais como o feminista e o GLBTT. Como bem podemos notar, a realidade social está mil anos à frente de alguns valores que ainda persistem.

O que insiste em permanecer é a sombra do preconceito que, no decorrer de nossa formação, enquadra o sexo feminino e masculino em caixinhas de titânio, vinculadas à identidade sexual heterossexual, que são quase impossíveis de serem quebradas. A formação das crianças ainda é dividida em meninos e meninas, a dominação de gênero ainda está impressa em cada brinquedo infantil, que irá, de certa forma, determinar as habilidades a serem desenvolvidas em cada um de nós. Assim, a divisão social do trabalho é naturalizada, como se homens já nascessem conhecendo matemática e a estrutura completa de um computador, enquanto as meninas nascem sabendo fazer uma deliciosa feijoada, aprendendo bem as técnicas de manejo com o fogão e com a lavadora de roupas.

É preciso, porém, compreender que a diversidade sexual, com sua pluralidade afetiva e de experiências, constitui, sobretudo, um positivo elemento de integração dos laços sociais e de vivência civilizada. A orientação sexual do indivíduo não influencia de forma negativa o seu caráter. Pelo contrário, só traz benefícios à sociedade, pois um indivíduo satisfeito no seu relacionamento afetivo-sexual será uma pessoa feliz e tranquila em todos os ambientes sociais, seja de trabalho, escola ou família. A comprovação do bem-estar social causado pela aceitação das diferentes orientações sexuais é a própria verificação do que ocorre quando ela não existe.

As pessoas podem se isolar, se destruir, ficar atormentadas. Outras podem até se suicidar por não aguentarem a pressão da sociedade, que neste caso tende a sufocar os indivíduos, fazendo que eles, muitas vezes, vivam se escondendo do grupo social. O isolamento é comum entre os indivíduos homossexuais que tentam evitar o preconceito. No entanto, os movimentos sociais já lutam de todas as formas para que os homossexuais não tenham de se isolar e possam viver sua afetividade e sexualidade como os heterossexuais, já que a ideia é sufocar o preconceito e não o indivíduo.

OBS. 1 - Ver Programa Brasil sem Homofobia, em: www.sedh.gov.br. OBS. 2 - Utiliza-se, no âmbito das políticas públicas e dos movimentos sociais, para se referir a diversos movimentos a sigla GLBTT (gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e travestis).


Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/23/artigo133462-1.asp. Acesso em 10 set 2013.

domingo, 21 de julho de 2013

TJ-RS reconhece direito a bens em união homoafetiva

Jomar Martins
9 de abril de 2012

Se há prova robusta de que o relacionamento entre duas mulheres era visto como união estável, nos moldes do artigo 1.723 do Código Civil, e que ambas concorreram para a formação do patrimônio, não há por que negar a uma delas o direito sucessório, em caso de morte da companheira. Com este entendimento, a 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu provimento à apelação de uma mulher em litígio com a mãe da companheira que morreu. A segunda instância reformou a sentença que não reconheceu a união estável. A primeira instância entendeu que a relação era apenas de ‘‘parceria civil’’ — o que não geraria direito aos bens deixados de herança.

Respaldados pelo posicionamento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Adin nº 4.277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, em 5 de maio de 2011, os desembargadores foram unânimes em declarar a existência de união estável homoafetiva entre ambas, com os respectivos desdobramentos legais. Para as regras que tutelam o direito sucessório entre companheiros, foi aplicado o artigo 1.790, inciso III, do Código de Processo Civil. A decisão é do dia 22 de março.

O caso é originário da Comarca de Porto Alegre e tramita sob segredo de justiça. Conforme o acórdão, L.S.C. e R. de. O. viveram juntas entre julho de 1983 e fevereiro de 2008, quando a segunda morreu. A primeira teve de ir à Justiça na Justiça para pedir os direitos de sucessão sobre o imóvel em que habitava conjuntamente com ela. A ação pedia reconhecimento e dissolução de união estável, cumulada com petição de herança, movida contra o espólio de R. de O., representada pela mãe.

O juiz de Direito Marco Aurélio Martins Xavier, ao proferir a sentença, entendeu que relação era de parceria civil. Em consequência, declarou como propriedade de L.S.C. a fração ideal de 50% do imóvel que lhes servia de moradia. Para ele, a partilha deve respeitar esta proporção, inclusive no que toca às duas construções efetivadas sobre o terreno.

Inconformada com a decisão, L.S.C. interpôs Apelação no Tribunal de Justiça. Afirmou que a legislação não proíbe a união homoafetiva e que cabe ao julgador, diante da lacuna da lei, fixar os efeitos jurídicos decorrentes. Alegou que a sentença feriu o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, que dispõe sobre o princípio da dignidade humana. Mencionou também o artigo 226, parágrafo 3º, da Carta Magna, que reconhece a união estável entre homem e mulher como entidade familiar. Disse que tal artigo deve ser aplicado às uniões homoafetivas constituídas com o intuito de família, pois o Direito tem de acompanhar a evolução da própria sociedade.

Por fim, garantiu ter sido plenamente demonstrado que a união havida com R. de O. foi pública, contínua, duradoura e com o intuito de constituir família, somente cessando em razão da morte. A procuradora de Justiça com assento na 8ª; Câmara Cível, Noara Bernardy Lisboa, opinou pelo provimento da ação.

O desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, que relatou a matéria no colegiado, acatou a apelação. Registrou que o Pleno do STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, reconheceu a proteção jurídica da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Com a decisão, o artigo 1.723 do Código Civil passou a ser interpretado conforme a mudança constitucional. Logo, foi excluído do dispositivo legal qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Em suma, este reconhecimento deve ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.

Segundo o relator, a decisão do STF superou a compreensão da sentença, de que era juridicamente impossível a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo, tese que ainda vigorava na corte. ‘‘Deste modo, e considerando que, na espécie, o conjunto probatório constante dos autos é robusto no sentido da presença dos elementos caracterizadores de um relacionamento estável, nos moldes do artigo 1.723 do Código Civil (...), não há dúvida de que deve ser emprestado à aludida relação tratamento equivalente ao que a lei confere à união estável havida entre homem e mulher, inclusive no que se refere aos direitos sucessórios’’, destacou.

Ao finalizar o voto, o relator, citando o parecer da procuradora de Justiça, disse que a questão sucessória entre companheiros deve considerar o aplicado no artigo 1.790, inciso III, do Código de Processo Civil.

Os desembargadores Rui Portanova (presidente do colegiado) e Luiz Felipe Brasil Santos votaram no mesmo sentido do relator.

Acórdão: http://s.conjur.com.br/dl/acordao-tj-rs-reconhece-uniao-estavel.pdf


Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-abr-09/tj-rs-reconhece-direitos-sucessorios-uniao-estavel-duas-mulheres. Acesso em 09 jul 2013.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Pai narra luta para fazer o filho aceitar a própria homossexualidade

David Sheff
15 de Novembro de 2012
 
John Schwartz enxerga o sofrimento do filho depois de uma tentativa de suicídio e lança livro sobre o difícil caminho que o garoto percorreu para se aceitar 

Jeanne Mixon, esposa do jornalista do New York Times John Schwartz, entrou em casa uma tarde para encontrar o filho de 13 anos, Joe, incoerente, de “olhos esbugalhados” e nu no banheiro. Frascos de comprimidos estavam espalhados pelo chão e havia uma faca dentro da banheira. Joe tentou se matar.

A cena – um pesadelo para todos os pais - abre o livro de memórias de John Schwartz, “Oddly Normal: One Family’s Struggle to Help Their Teenage Son Come to Terms With His Sexuality”(ainda sem título em português, mas que pode ser traduzido como ‘Estranhamente normal: a luta de uma família para ajudar seu filho adolescente a aceitar sua sexualidade’).

A publicação é um relato emocionante do aprendizado de Joe para conseguir aceitar sua sexualidade, assim como o esforço de seus pais para protegê-lo da homofobia e ajudá-lo a suportar um sistema escolar que continua a marginalizar crianças que precisam de compreensão.

Schwartz está no trabalho quando Jeanne liga para lhe dizer que o filho tentou se matar. Ele corre para o hospital, onde se senta ao lado da cama de Joe, implorando ao filho que beba uma solução que neutralizará o efeito das drogas ingeridas. É possível sentir sua angústia quando ele tenta persuadir o filho: “vamos, Joseph. Mais um gole. Vamos. Um golinho mais apenas."

Anos antes, o casal já tinha reparado na paixão de Joe por seus “lindos” brinquedos, como ele mesmo definia, e suas bonecas. John e Jeanne sabiam que seu filho era gay. Ao contrário de muitos pais, eles estavam ansiosos para ver o menino sair do armário e se assumir. 

Drogas poderosas 

Mas mesmo pais compreensivos como os da família Schwartz não poderiam proteger seu filho da implacável experiência escolar, nem de si mesmo. O livro conta um episódio quando Joe, sentindo-se mais corajoso depois de assumir sua homossexualidade, repreendeu um grupo de meninos sobre a forma que eles classificavam as meninas. Ele passou a classificar os meninos também: "você é nota sete. Você é nota cinco.” À medida que os meninos iam ficando desconfortáveis, Joe zombava de todos e os desafiava: “os garotos estão com medinho do menino gay?", perguntava.

As crianças contaram o que aconteceu para um conselheiro da escola e a história se espalhou deixando Joe deprimido. Horas mais tarde, ele engoliu mais de duas dezenas de cápsulas de Benadryl (anti-histamínico vendido em farmácia). “Se tivéssemos mantido drogas mais poderosas em casa, poderíamos ter perdido nosso filho”, escreve Schwartz.

Adolescentes LGBT

Schwartz relata que as estatísticas sobre adolescentes gays que cometem suicídio, ou pelo menos tentaram, “são obscuras”, mas sua análise o leva a concluir que uma investigação melhor sobre o assunto acabará mostrando uma taxa substancialmente mais elevada de suicídio e uma maior incidência de pensamentos suicidas entre os adolescentes LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis) do que na população em geral.

Muitos adolescentes gays tiraram as próprias vidas, incluindo Tyler Clementi, o estudante americano que pulou da ponte George Washington depois de saber que um colega de quarto colocou na internet imagens dele beijando outro homem e enviou mensagens no Twitter incentivando outros estudantes a assistirem a cena.

Schwartz ainda ressalta que a intimidação ostensiva não é o único tipo de bullying que afeta crianças gays. De acordo com uma pesquisa, cerca de 90% dos estudantes gays disseram ter ouvido a palavra “gay” sendo usada de forma pejorativa e 72% relataram ter ouvido palavras homofóbicas como “bicha”. O resultado, Schwartz escreve, “são filhos gays que podem carregar um valentão internamente que os faz se sentir miserável, não importando se tem ou não alguém mexendo com eles pessoalmente.”

Transtornos psiquiátricos

A tentativa de suicídio de Joe parecia uma reação ao ostracismo na escola, mas Schwartz tem o cuidado de não aceitar explicações muito simples diante da profundidade do desespero de seu filho. Joe foi ridicularizado durante boa parte de sua infância porque ele era diferente, e não só por ser desajeitado em esportes e efeminado. Ele também era dado a explosões de raiva dirigidas a outras crianças e professores. Além disso, há indícios de que ele poderia ter tido um ou mais transtornos psiquiátricos.

Schwartz também olha para si mesmo e descreve suas próprias falhas como pai. Ele narra dolorosamente os erros que ele e a mulher cometeram, incluindo as tentativas anteriores de suicídio de Joe que nunca foram percebidas pelos pais. Scwartz conta que uma vez chegou a aceitar as desculpas do filho quando encontrou sinais de que Joe poderia ter tentado estrangular a si mesmo. Schwartz escreve: “a esta altura você pode estar pensando que éramos cegos. Em retrospecto, a única resposta que eu posso dar é ‘sim, é basicamente isso’”.

É claro que a leveza que permeia a história deste pai, que tentou desesperadamente ajudar o filho homossexual, só é possível porque a tentativa de suicídio de Joe não se concretizou - ao contrário de muitos outros, incluindo o caso de Tyler Clementi.

Disponível em http://www.cenariomt.com.br/noticia.asp?cod=249126&codDep=8. Acesso em 27 nov 2012.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Transexual que perdeu guarda de bebê sofre nova derrota na Justiça

Roney Domingos
19/02/08

A Justiça de São José do Rio Preto, cidade localizada a 440 km de São Paulo, negou neste dia 15 o pedido de afastamento do promotor de Justiça Cláudio Santos de Moraes do processo de adoção de uma criança de 15 meses.

O pedido de afastamento do promotor foi apresentado pelo transexual Roberta Luiz Góes, de 30 anos. Roberta perdeu a guarda da criança, de quem cuidava há um ano.  

Roberta entrou na Justiça para afastar o promotor porque ele, encarregado de analisar o processo de adoção, obteve liminar do Tribunal de Justiça de São Paulo para impedir que o transexual  continue a cuidar do bebê. O menino foi levado para um abrigo.

O advogado de Roberta, Rogério Vinicius dos Santos, que pediu à Justiça que o promotor seja afastado do caso, disse que vai recorrer contra a decisão. Ele apresentou ao juiz da Vara de Família de São José do Rio Preto um recurso chamado 'exceção de suspeição.'  O juiz Osni Assis Pereira recusou o recurso por entender que não se aplica ao caso em julgamento. O magistrado também disse que os motivos alegados pela defesa do transexual não tornam o promotor suspeito.

O advogado afirma que o promotor não tem condições de continuar no processo de adoção, "porque não admite sequer a existência do transexual Roberto como pessoa."  Para o advogado, essa postura vai contra o princípio de que o promotor que trata de processo de adoção deve ser neutro.

O promotor, por sua vez, afirma que está apenas fazendo seu trabalho. "Não é preconceito. Isso aqui não é brincadeira. Não posso submeter uma criança a testes. Tenho de encontrar uma família para cuidar dela", afirmou.

O caso 

Roberta disse que a avó do menino a procurou há cerca de um ano pedindo para que ela cuidasse do bebê, na ocasião com dois meses. O menino estava doente e precisou passar por tratamento médico.

Roberta afirma que já passou não apenas por um, mas por três testes psicossociais, que comprovaram sua capacidade para cuidar do bebê. De acordo com ela, há cerca de um ano a mãe decidiu passar a guarda da criança para ela. Roberta conta que decidiu, então, entrar com pedido judicial para ficar definitivamente com o bebê.

Em recurso ao TJ, no entanto, o promotor Moraes conseguiu uma liminar que retirou a criança da cabeleireira e a colocou em um abrigo da cidade, onde ficará até a decisão definitiva sobre a guarda. 

A decisão judicial motivou um protesto do Centro de Referência em Direitos de Gays Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros (GLTB) da cidade em frente do Fórum de São José do Rio Preto. A Associação procurou  o Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDVA) para tentar o apoio à causa da transexual.

Roberta conta que ela e o companheiro, que tem 40 anos, já planejavam adotar uma criança. "Foi uma coisa pensada. A única coisa que foi surpresa foi ele ter aparecido na nossa vida assim", disse a cabeleireira.

Alegação do MP

Segundo a  Agência Estado, o promotor alegou que o bebê não pode conviver com um casal "anormal" e não levaria uma vida "normal" sem a presença de um pai e de uma mãe. A manifestação da transexual não comoveu o promotor da Infância e da Juventude, que considerou o ato como "não-civilizado".

"Eles poderiam ter se manifestado no processo, mas não vou mudar minha posição", disse. "Estou zelando pelos interesses da criança e não dos adultos, pois esta criança tem de ter uma família convencional, ser criada por um pai e uma mãe. Imagine como ela ficará revoltada ao descobrir que foi criada por uma família anormal", disse. 

Segundo Moraes, ele não quer passar por culpado, caso a criança, no futuro, fique revoltada ao saber que foi adotada por um casal de homossexuais. "Ninguém escolhe pai ou mãe, mas numa adoção isso é possível. A criança precisa de pais adotivos que tenham condições morais, sociais e psicológicas. E esse casal, por ser anormal, não tem condições sociais para adotar uma criança, que não é um tubo de ensaio", afirmou.

O processo depende de duas decisões: uma, da Justiça de São José do Rio Preto, sobre o pedido de guarda da criança feito por Roberta; outra, no Tribunal de Justiça do estado, sobre o pedido do MP contra a adoção do garoto pela transexual.

Disponível em <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL304081-5605,00-TRANSEXUAL+QUE+PERDEU+GUARDA+DE+BEBE+SOFRE+NOVA+DERROTA+NA+JUSTICA.html>. Acesso em 15 nov 2012.

sábado, 27 de outubro de 2012

A conversão da união estável homoafetiva em casamento

José Menah Lourenço
25 de outubro de 2012

Como se sabe, é, atualmente, pacífico o reconhecimento de união estável homoafetiva,ou seja, entre duas pessoas do mesmo sexo, superando a opinião outrora vigente da mesma só ser possível entre homem e mulher — conforme artigo 1723, do Código Civil.

Portanto, não há como se discutir acerca da validade ou da existência de tal união estável ante o julgamento, pelo Pretório Excelso, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 (DF), em conjunto a Arguição de descumprimento de preceito fundamental 132 (RJ), que lhe garantiu pleno reconhecimento jurídico, produzindo eficácia contra todos (erga omnes) e efeitos vinculantes, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública — nos termos do artigo 102, III, parágrafo 3º, da Constituição Federal e das Leis 9.868/1999 e 9.882/1999.

Indispensável, pois, a transcrição da respectiva ementa:
"1. (...). 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA.

O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de promover o bem de todos. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual "o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido". Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.

3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO FAMÍLIA NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIOCULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA.

O caput do artigo 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada" (inciso X do artigo 5º). [...] Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.

4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE "ENTIDADE FAMILIAR" E "FAMÍLIA".

A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no parágrafo 3º do seu artigo 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o artigo 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do artigo 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia "entidade familiar", não pretendeu diferenciá-la da família. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado entidade familiar como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem "do regime e dos princípios por ela adotados", verbis: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO.

Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição.

6. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA "INTERPRETAÇÃO CONFORME"). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES.

Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do artigo 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.[1]
Assim, tal fato dispensa maiores comentários ou dissertações a respeito, sendo, pois, uma realidade integrada a nosso direito, garantindo aos companheiros de tal união estável que deve ser, obviamente, pública, contínua e duradoura todos os direitos decorrentes, tais como alimentos, sucessão, entre outros.

É possível a conversão da união estável homoafetiva em casamento?

Contudo, outra questão decorrente de tal julgamento — sendo, sem dúvida, uma decorrência natural deste — é a possibilidade — ou não — da conversão da união estável homoafetiva em casamento.

Embora, como dito, tal suposição seja decorrente do mencionado julgamento, a existência de tal possibilidade não é, nem de longe, pacífica.

a) Corrente que não reconhece tal possibilidade
Com efeito, para muitos, a decisão do Supremo Tribunal Federal não mencionou tal hipótese, apenas se limitando a reconhecer ausência de vedação constitucional à união estável homoafetiva, posto que o artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição Federal, seria uma norma inclusiva, visando garantir direitos e deveres à esfera jurídica daqueles que têm um relacionamento público, duradouro e contínuo com outra pessoa do mesmo sexo.
Ademais, o casamento é ato com diversas regras para sua consecução (habilitação, celebração, impedimentos, causas suspensivas, entre outros) garantindo a chancela estatal a tal ato volitivo (exclusivamente entre homem e mulher, para os próceres de tal tese), desde que cumpridos seus inúmeros requisitos legais.

Estribando tal pensamento, além da interpretação gramatical do artigo 1514, do Código Civil, a doutrina tradicional — Lafayette e Bevilacqua, respectivamente — estipula o casamento como união entre homem e mulher:
“O casamento é um ato solene pelo qual duas pessoas de sexo diferente se unem para sempre”. “O casamento é um contrato bilateral e solene, pelo qual um homem e uma mulher se unem indissoluvelmente”.[2]

Os paladinos de tal tese observam, também, que, autorizando tal conversão em casamento, estar-se-ia realizando indevida interpretação extensiva, arvorando-se o juiz em legislador.

b) Corrente oposta, assegurando tal possibilidade  
Em sentido contrário, aqueles que defendem tal conversão voltam seus olhos não para o estrito regramento do casamento, previsto no Código Civil, mas para os próprios direitos da personalidade dos casais homoafetivos, em união estável, que buscam a respectiva conversão em casamento — que, com o divórcio, não é necessariamente para sempre, como diziam Lafayette e Bevilacqua.

Com efeito, usam dos mesmos direitos outrora aventados quando do pleito pelo reconhecimento da união estável homoafetiva: dignidade da pessoa humana, liberdade, autodeterminação, igualdade, pluralismo, intimidade, não discriminação, busca da felicidade e segurança jurídica.

Claro que, para os partidários de tal entendimento, este direito à conversão não é ilimitado — como não é nenhum direito...—, devendo ser considerado o impedimento à conversão daquele que era separado de fato ou judicialmente, quando iniciada a união estável, devendo estar divorciado quando realizar tal pleito.

E tal tese também encontra ressonância.

A Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de Alagoas dá acatamento pacífico a tal hipótese, através do Provimento 40, de 6 de dezembro de 2011:
Artigo 1º Os Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais do Estado de Alagoas deverão receber os pedidos de habilitação para casamento de pessoas do mesmo sexo, procedendo na forma do parágrafo 1º do artigo 67 da Lei 6.015/73.

Parágrafo único. Mesmo na hipótese de não haver impugnação pelo órgão do Ministério Público ou, ainda, oposição de impedimento por terceiro, na forma prevista no parágrafo 3º do artigo 67 da Lei 6.015/73, os autos deverão ser, imediatamente, encaminhados ao Juiz, que decidirá sobre o pedido de habilitação.

E mesmo na jurisprudência tal tese também faz eco, ainda que tímido, como se vê em julgado do Superior Tribunal de Justiça que, em leading case e por maioria, autorizou pedido de habilitação de casamento para pessoas do mesmo sexo:
DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTIGOS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF 132/RJ E DA ADI 4.277/DF.

1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam “de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita.

2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF 132/RJ e da ADI 4.277/DF, conferiu ao artigo 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família.

3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado família, recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento — diferentemente do que ocorria com os diplomas superados — deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade.

4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição — explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF — impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos.

5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família.

6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os “arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto.

7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (parágrafo 7º do artigo 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união.

8. Os artigos 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar.

9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário — e não o Legislativo — que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos.

10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitirse desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis. 11. Recurso especial provido".[3]

No mesmo sentido, julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“REGISTRO CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS - Recurso interposto contra decisão que deferiu registro da conversão de união estável homoafetiva em casamento — Orientação emanada em caráter definitivo pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 4277), seguida pelo Superior Tribunal de Justiça (Resp 1.183.378) - Impossibilidade de a via administrativa alterar a tendência sacramentada na via jurisdicional — Recurso não provido” (Apelação Cível 0000601-12.2011.8.26.0037, relator Desembargador Renato Nalini).
E, culminando tal raciocínio, seguem os mesmos ventos o Enunciado 525, do CJF, divulgado na 5ª Jornada de Direito Civil:
“Artigo 1.726. É possível a conversão de união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento, observados os requisitos exigidos para a respectiva habilitação.”

Conclusão

Respeitados os defensores da não possibilidade de conversão da união estável homoafetiva em casamento, mister observar que a jurisprudência pende para aceitar tal possibilidade, embora tal pensamento encontre muita resistência, o que levará a inúmeras decisões em ambos os sentidos no dia-a-dia forense.

O mais correto, contudo, seria que o legislador fizesse sua parte, com diploma que decidisse tal tema de forma precisa e constitucional, em vez de jogar tal decisão, de enorme controvérsia jurídica, para os magistrados, em detrimento da segurança jurídica dos jurisdicionados.

[1] STF. ADI 4277, Relator: Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-03 PP-00341
[2] Cf. GONÇALVES, Carlos Roberto. “Direito Civil Brasileiro”, Ed. Saraiva, 4ª edição, pp. 22/23
[3] STJ. REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012

Disponível em <http://www.conjur.com.br/2012-out-25/jose-lourencoa-conversao-uniao-estavel-homoafetiva-casamento>. Acesso em 27 out 2012.