Nina Lemos
18.07.2011
A historiadora Mary Del Priore, 59 anos, odeia a boneca
Barbie. Explica-se. Segundo ela, foi com a chegada da boneca da Mattel ao
Brasil, nos anos 70, que a mulher brasileira começou a ficar obcecada em ser
loira, magra, consumista. “A Barbie ensina as crianças a serem putas”, diz essa
senhora distinta, autora de 29 livros, o mais recente deles, Histórias Íntimas,
um panorama sobre o erotismo e a intimidade no Brasil.
Mary é uma especialista em história brasileira com todas as
credenciais de intelectual de sucesso. Foi professora na USP e fez doutorado na
França. Mas ela gosta mesmo é de contar histórias, seja em romances ou em
livros como Corpo a Corpo com a Mulher ou História do Amor no Brasil, ambos com
mais de 40 mil exemplares vendidos. Sim, Mary é uma escritora de best-seller (o
seu mais recente livro ocupava até o fechamento da edição o primeiro lugar na
lista dos mais vendidos de não ficção) que não se considera intelectual, “mas
uma boa pesquisadora”.
Mãe de três filhos (Pedro, 36 anos, Paulo, 34 e Isabel, 31)
ela pertence a uma geração que quebrou tabus, porém também não dramatiza suas
experiências. Está no segundo casamento, não teve crise ao criar os filhos ao
mesmo tempo em que se dedicava a uma carreira intelectual e envelhece com
tranquilidade. Questiona a obsessão pelo corpo, mas se apresenta na entrevista
maquiada e elegantemente vestida.
O que preocupa mesmo essa moça distinta são as mulheres da
geração dos 20, 30 anos. “A geração dos meus filhos quer fazer tudo ao mesmo
tempo, o que é uma situação dramática”, ela avisa. E também acha que, por mais
que as mulheres sejam independentes, sofrem de uma submissão grave: se não a
homem nenhum, ao espelho.
“Isso é reflexo de um narcisismo muito grave. Antes,
queríamos mudar o mundo. Hoje, sentimos falta de um engajamento em causas
sociais, dos outros”, diz. Não, não pense que ela está falando que se você
reciclar o seu lixo vai ser mais feliz. “Hoje se pensa muito ‘se eu fizer a
minha parte, já está bom’. É triste, pois a pessoa continua isolada, achando
que não precisa trabalhar coletivamente”, afirma.
Funk e sex shop
As palavras polêmicas saem com serenidade da boca dessa
filha da elite carioca (estudou no tradicional colégio Sion). Na entrevista a
seguir, ela questiona o funk brasileiro: “Acho a Tati Quebra-Barraco uma
machista”. E também a internet. “Tem coisas maravilhosas, mas exibe a sexualidade
de forma mecânica e ginecológica.” E acha que as pessoas não fazem tanto sexo,
apesar da moda das sex shops e do excesso de exposição de nossas intimidades.
“Quem tem tempo para ter amante com o trânsito de São Paulo?”, brinca. Enquanto
serve café e bolo para a repórter na casa do século retrasado que escolheu para
viver, em Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro, Mary, mulher
sofisticada, fala da abertura dos primeiros bordéis no Brasil, de aborto,
plástica, do papel do homem... A vontade é de não parar de conversar com essa
contadora de histórias.
Tpm - Você é de uma geração que quebrou tabus, queimou
sutiãs. Qual acha que é a diferença entre sua geração de mulheres e a das que
têm 20, 30 anos hoje?
Mary Del Priore - Acho que vocês têm uma vida extremamente
sacrificada. Sempre reparo nisso quando pego a ponte aérea. Vejo mulheres
absolutamente estressadas, ao mesmo tempo ligando para saber dos filhos e tendo
que dar conta de muita pressão no trabalho. Essa geração de mulheres está
ocupando postos em todas as áreas. Houve um avanço enorme. Nós fizemos um
esforço para que nossas filhas se educassem e isso deu certo. Mas agora vocês
estão no topo, estão no limite. Ter que dar conta da vida profissional e da
vida privada é dramático. O desafio que chegou no fim do século passado é este:
como ser a melhor esposa, a melhor profissional, a mais bonita, a mais
inteligente. Isso me preocupa muito. Não sei o que vocês vão priorizar, se os
afetos vão ficar comprometidos, se a saúde vai ficar comprometida...
Você acha que para a sua geração essas escolhas eram mais
fáceis?
Na minha geração era mais simples. A família vinha em
primeiro lugar. Você casava, tinha filhos. Só fui ver que existia a solidão
como opção criativa quando fui morar na França nos anos 80. Isso era uma
escolha de muitas mulheres de lá. Você deixar de lado o marido, os filhos, para
cumprir os compromissos profissionais e intelectuais era a agenda. Não sei se
isso é uma coisa de países com mais educação, onde você pode escolher os seus afetos,
não é obrigada a casar. Ninguém é obrigada a casar lá. Isso está chegando agora
ao Brasil, mas às custas de muitos sacrifícios.
Você é mãe de três filhos, foi professora universitária e já
lançou 29 livros. Teve que fazer muitos sacrifícios para dar conta de tudo?
Não tive que fazer muitos sacrifícios. Sou um exemplo à
parte. Me casei cedo e tive três filhos. Mas só depois que eles estavam
crescidos voltei a estudar. E sabia exatamente o que queria fazer na
universidade: história. Fiz um concurso de pós-graduação na USP e passei em
primeiro lugar. Tive muita sorte. Não fiquei patinando, pensando no que queria
fazer. E voltei a estudar quando meus filhos também já estavam na escola.
Então, não me sentia culpada como as mulheres de hoje se sentem. Antes de
voltar a estudar, eu era casada com um homem que estava indo muito bem na
carreira dele, era a housewife perfeita! Mas voltei a estudar por vontade e
isso não foi uma crise para mim. E tinha ajuda com os meus filhos, deu para
conjugar tudo sem culpa. Eles iam para a escola, eu para a universidade.
E seu marido, seus pais, a incentivaram ou acharam que você
ia abandonar a família?
Sempre tive muito apoio dos meus dois maridos para estudar.
E, quando os meus filhos foram para a universidade, pude me dedicar só ao
trabalho. E fui criada em um ambiente intelectual. Meus pais gostavam de juntar
gente em casa, de políticos, como Carlos Lacerda, a poetas, como Olegário
Mariano. Eu e meu irmão ficávamos no meio disso tudo, convivendo com os
adultos. E sempre fui estimulada a ler, o que foi fundamental quando decidi que
ia viver de escrever livros.
E, quando você foi morar fora para estudar, não teve que
abrir mão do contato com seus filhos?
Eu estava recém-casada com meu segundo marido e de novo tive
sorte. Era professora da USP e ele tinha negócios fora. Meus filhos foram
comigo e tiveram a chance de passar esse tempo fora, o que acho que deu a eles
uma visão de mundo diferente. Acho que a viagem não é só trocar de espaço
físico. Isso te ajuda a avaliar a sua condição de brasileiro. Passei cerca de
cinco anos fora. O que foi bom para que todos nós avaliássemos o que queríamos
fazer. Foi quando me dei conta de que havia espaço para escrever esses livros
que escrevo hoje.
Hoje temos esse sucesso de livros históricos, como o 1808,
de Laurentino Gomes. Por que você acha que estamos com esse interesse pela
história?
Na Europa existe uma tradição de romances históricos desde o
século 19. Aqui, tivemos uma população basicamente analfabeta até o século 19.
E hoje, com esse mercado de leitores se ampliando, o interesse pela história
aumentou. Acho que um dos motivos é que, nesse período de globalização, todo
mundo quer saber de onde veio. Senão, fica todo mundo perdido.
Por que resolveu direcionar seu trabalho a questões
femininas?
Meu trabalho não é só sobre mulheres. Acabei escrevendo
muito sobre corpo, amor. Mas escrevi 29 livros. Tenho uma coluna no Estado de
S. Paulo e sou dessa geração que promoveu mudanças, isso me deu esse radar. Mas
tenho interesse em fazer história romanceada. Sobre grandes personagens, como a
condessa de Barral, a amante de dom Pedro II. Agora, resolvi, em Histórias Íntimas,
falar sobre os temas que estão na ordem do dia, como racismo, homofobia. São as
coisas que estão aí. E sobre os mitos do erotismo brasileiro. “As mulheres brasileiras são extremamente machistas. São
independentes, mas quando chegam em casa querem ser tratadas como princesas.
Esse é um grande paradoxo”
Um desses mitos é que as mulheres brasileiras são
“calientes”. Você concorda com isso?
Acho que o grande problema das mulheres brasileiras é que
elas são extremamente machistas. Não deixam os filhos lavarem a louça e querem
ser chamadas de docinho em casa. E se identificam com as mulheres frutas,
comestíveis. Fora de casa, são independentes. Quando chegam em casa, querem ser
tratadas como princesas. Esse é um grande paradoxo. Elas casam para entrar em um
conto de fadas.
E o que os homens buscam no casamento?
Homens e mulheres têm aspirações diversas em relação ao
casamento. As mulheres querem que o casamento seja tudo, que preencha todas as
coisas. O homem, quando casa, quer uma família, filhos. Eles procuram coisas
realmente diferentes. Então, fica difícil dar certo.
Hoje, muitas mulheres são executivas, políticas. Existe o
mito de que entrando pesado no mercado de trabalho a mulher tende a se
masculinizar e a imitar o homem. Você concorda com isso?
Não concordo. Acho que a mulher brasileira sempre vai usar
da sedução, por isso não vai virar um homem de saias. Temos esse exemplo
histórico. No Brasil, desde os tempos coloniais, as mulheres sempre usaram do
seu poder de sedução para ter poder. Elas são muito femininas. E ainda existe
muito no Brasil mulheres que ganham dinheiro com o corpo. Todas querem ser
modelo. Isso é característica de um país que ainda é muito miserável. O sonho é
ser BBB, depois posar para a Playboy, ou seja, enriquecer vendendo o corpo.
Isso vai mudar quando o país tiver mais educação.
Outra coisa que acontece no Brasil é que a mulher, quando
envelhece, é chamada de feia. Já o homem fica charmoso. Como você e as mulheres
da sua geração estão lidando com o envelhecimento?
A minha geração está podendo lidar melhor com o
envelhecimento. Sabemos que ir ao cirurgião plástico uma vez por mês não vai
resolver o problema de ninguém. Envelhecer é uma coisa chata. Você tem perdas.
Se você era uma fundista, vai ter problema de joelho. Não é agradável. Agora,
vejo que as mulheres da minha idade que estudaram não saem correndo para o
cirurgião plástico com a primeira ruga que aparece. O bom de envelhecer é
colocar as coisas na balança, ver o que você ainda quer fazer. Se você tem satisfação
com a sua família, com o seu trabalho, seus amigos, você vai encarar o
envelhecimento com serenidade. Para mim, isso não é um bicho de sete cabeças.
“A mulher está preocupada em emagrecer, ser gostosa e não pensa no coletivo.
Isso precisa mudar até para que ela possa deixar de ser escrava do espelho”
Mas muitas mulheres enlouquecem com as perdas físicas, a
perda da beleza.
No passado, a velhice era respeitada, era sinal de
sabedoria. Mas o século 20 é o século do corpo. E o que você vê hoje no Brasil
é que as mulheres são escravas do espelho. A brasileira ainda está muito
preocupada com seu próprio umbigo. Ela está preocupada em emagrecer, ser
gostosa e não pensa no coletivo. Isso precisa mudar até para que a mulher possa
deixar de ser escrava do espelho. E isso você vai conseguir pensando na sua
sociedade, se engajando em alguma causa coletiva. E o que acontece hoje é que
muitos pensam: “Se eu fizer a minha parte, já está bom”. Você recicla o seu
lixo e acha que já fez a sua parte. E continua isolada dos outros achando que
não precisa trabalhar coletivamente. Tudo isso faz parte de pensar só em si
mesma, não sair de si, ser muito narcisista.
O Brasil é o segundo país em cirurgias plásticas no mundo,
atrás apenas dos Estados Unidos. Ainda copiamos muito o modelo americano?
Começamos a copiar os Estados Unidos depois da Segunda
Guerra. Antes era a Europa, só se falava francês nas escolas, esse era o
modelo. A elite brasileira começou a ir para os Estados Unidos estudar nos anos
50. E, claro, temos a influência do cinema americano. A formação do macho
brasileiro está muito ligada ao cinema americano. A importância do físico
masculino vem dos filmes. Antes, os homens não tinham vaidade. A obsessão pela
virilidade, essa coisa de colocar o pau na mesa, foi alimentada pelo filme
americano, pelos faroestes.
A imagem da mulher também deve ter sido influenciada pelos
filmes...
As primeiras loiras vieram do cinema americano. Para você
ver, a moda da loira chegou ao Brasil no fim do século 19 com os bordéis, que são
uma ideia importada da Europa. Cafetões começaram a trazer para o Brasil
mulheres pobres que se diziam loiras. E é nessa mesma época que as bonecas
francesas chegaram ao Brasil. Olha que loucura!
E hoje temos essa febre de loiras.
Isso começou nos anos 70, com a chegada da Barbie ao Brasil.
É aí que começa o ideário do personal trainer, do fitness. E na mesma época
começam as apresentadoras loiras na TV brasileira. Acho isso uma perversão! Em
um país mestiço você brincar com boneca loira e ter como ídola uma
apresentadora loira cria uma problema de autoestima muito sério nas crianças. Você disse em um dos seus livros que isso tem a ver com a
obsessão das brasileiras pelas cirurgias plásticas. No Brasil a cirurgia
plástica é uma coisa complicada. A mulher toma como parâmetro a Barbie, sendo o
país esse caldeirão mestiço de negro, branco, índio. Então, como a mulher vai
conseguir ser a Barbie? Não vai. Não é à toa que o Brasil é o segundo país em
cirurgia plástica no mundo. A Barbie é uma boneca que ensina a menina a ser
puta. E só isso. Ela só quer saber de roupa, nem liga para o Ken. Ela só ensina
a consumir. As bonecas bebês, por exemplo, ensinavam a ser mãe. A Barbie ensina
a consumir, e as garotas adoram. E não sei quando o reinado da Barbie vai acabar.
Tinha jurado que jamais daria uma Barbie para minha neta. O que você acha que
aconteceu? Já dei [risos].
Por que, afinal, você deu?
Porque não resisti. As meninas não resistem nem uma avó.
Elas ficam loucas pela boneca. Não sei porque as meninas adoram aquela coisa
toda rosa.
Além das cirurgias plásticas, hoje existe também a obsessão
pela magreza.
Até os anos 80, para o homem, a mulher gostosa era aquela
que enchia uma cama, a mulher com forma. Em um dos meus livros, entrevistei uma
psicanalista que me disse que, quando as mulheres fazem plástica, isso não é
para os homens, mas para elas. Dizem que a mulher sempre quer ser bonita para o
homem. Mas acho que no fundo não é isso, é para ela mesma.
“A Barbie é uma boneca que ensina a menina a ser puta. Ela
só quer saber de roupa, nem liga para o Ken. Ela só ensina a consumir. E não
sei quando o reinado da Barbie vai acabar”
A plástica seria uma maneira de melhorar a autoestima?
Autoestima é uma palavra nova, ela deve estar no vocabulário
há dez anos. As palavras vão acompanhando a história. Hoje, é importante a
mulher ter autoestima, é uma coisa que ajuda a caminhar, mas não pode ser só
isso. Ela também precisa interagir com os outros, participar da sociedade.
Você disse que as mulheres de 30, 40 anos estão
sobrecarregadas porque têm que dar conta de muita coisa. Essa pressão atinge os
homens também?
O patriarcado não atrapalha só as mulheres. E não vamos
ficar com essa de que o homem é um vilão. Ele também está sendo cobrado demais.
Além de trabalhar muito, tem a pressão de ser bom pai. E precisa fazer sucesso,
senão ele é um “loser”.
E os homens não teriam também a pressão de ser cheios de
aventuras sexuais, com amantes, por exemplo?
Acho que não, porque as pessoas não têm mais tempo. Nos anos
50, os homens tinham garçonnières, onde ficavam com suas amantes, que em geral
eram pessoas do seu círculo de amizade. Isso é uma coisa engraçada da sociedade
brasileira, as pessoas ficavam com amigas da família, parentes, para deixar
tudo em casa. Isso não existe mais. Com o trânsito de São Paulo, quem vai
conseguir ter uma garçonnière e a família? E uma coisa boa é que o divórcio,
recentemente, foi legitimado, e as pessoas acabaram com uma ideia que existia
na minha geração, de que o casamento tinha que ser uma fusão absoluta. Não, em
um casamento você não vira um. Continuam sendo duas pessoas. E, se não der certo, você pode se
divorciar. Isso é uma conquista recente. Quando era criança, no colégio Sion,
se a pessoa era filha de pais separados, era expulsa. Hoje, as pessoas podem
reconstruir seus laços. Ou até ficar sozinha.
Hoje, além de ter filhos e ser boa profissional, ainda temos
que ser liberadas sexualmente. Você não acha que até isso pode ser uma pressão
a mais?
Sim, com certeza. Você tem que ter feito de tudo, o que está
bem fora da realidade. As pessoas nem têm tempo para ter essa vida sexual tão
animada. Hoje tem, por exemplo, as sex shops, mas acho que isso serve mais para
jornalistas fazerem matérias [risos]. Eu, sinceramente, não conheço mulheres
que passem toda semana em uma sex shop para saber “o que chegou de novidade”.
Acho que ninguém quer saber qual é o último berro em consolo [risos].
Por outro lado, antes não podíamos nem falar de sexo...
Sim, as coisas mudaram muito rápido e tivemos ganhos
incríveis. Para você ter uma ideia, os primeiros manuais de educação sexual
eram feitos para homens. E falavam mal do homossexualismo e da masturbação. Os
primeiros dirigidos para as mulheres só tinham umas 15 páginas, em que, claro,
explicavam que as mulheres precisavam se preparar para o rito eterno. E só eram
indicados para mulheres com mais de 18 anos, que estivessem comprometidas. Isso
foi na época da ditadura do Getúlio Vargas, nos anos 40. Então, não faz tanto
tempo assim.
Hoje as mulheres podem, por exemplo, falar de sexo em
músicas de funk. O que você acha desse funk com forte apelo sexual?
Acho que o funk produziu um machismo de saias. Quando a Tati
Quebra- Barraco fala “eu te pago e te levo para o motel”, ela vira uma mulher
com um rolo de macarrão na mão, machista, que manda nos homens. Sabe aquele
homem que tem o dinheiro e por isso acha que pode mandar na mulher e fazer dela
o que quiser? Essa é a imagem que o funk da Tati Quebra-Barraco passa para mim.
Fora isso, acho que o funk tem um apelo sexual muito forte, que banaliza.
Como o aborto esteve presente no país historicamente? Você é
a favor da legalização?
O aborto existe desde sempre no Brasil. Existiam chás entre
os indígenas e também o infanticídio. Isso é um tema que as pessoas evitam
falar. Mas sempre existiu uma falta de sensibilidade muito grande. Mães pobres
sempre usaram o infanticídio e o aborto. E o que acontece? Quem aborta em geral
é a mãe pobre, que está desesperada, que não pode criar mais um filho. De
maneira que é preciso pensar em uma forma de legalizar o aborto no Brasil para
que tantas mortes de adolescentes, por exemplo, parem de acontecer.
Existe o mito de que o Brasil é um país tolerante, onde as
minorias se respeitam. Acredita nisso?
Racismo só “acabou” no Brasil quando houve uma lei. Precisou
de uma lei para mudar. Isso não é coisa de um país tolerante! Temos a história
da escravidão, que também tem muita coisa que os outros não sabem. Não eram só
os brancos que eram escravocratas. Um escravo, quando ganhava algum dinheiro e
conseguia comprar a sua alforria, a primeira coisa que fazia era ter seus
escravos. O racismo não é só uma questão de pele. É uma coisa que está
entranhada na história brasileira. É bom não perder de vista a tensão entre os
grupos. “As pessoas não têm tempo para uma vida sexual tão animada. Não conheço
mulheres que passem toda semana na sex shop para saber qual é o último berro em
consolo [risos]”
Você acha que a pressão para que as mulheres casem e tenham
filhos para serem aceitas na sociedade diminuiu?
Acho que as pessoas estão começando a achar que a solidão
não é uma maldição. O “ficou para titia” está começando a diminuir. Existem
novos modelos familiares. Um deles é a família em que a mãe é separada do pai,
a criança tem um padrasto, meios-irmãos etc. E outro, que começa a ser estudado
pelos sociólogos, é de pessoas que não casam mesmo. Preferem escolher os seus
afetos entre amigos e nas relações amorosas que têm ao longo da vida. E o mais
interessante é que isso está ligado a uma escolha pela liberdade.
Como a internet influencia no erotismo hoje em dia?
Na internet é tudo muito ginecológico. No século 19, o
erotismo era imaginar a nudez, as mulheres eram todas cobertas, então o bacana
era isso. E não à toa o fetiche era com os pés, com as mãos, partes todas
cobertas. O que vira o erotismo na época da internet? Sendo de uma forma tão
ginecológica, não sei como as novas gerações vão trabalhar o erotismo. Não sei
com o que os adolescentes sonham quando vão para a cama. O que sabemos por
estudo é que a internet disponibiliza imagens em que o sexo é muito mecânico,
uma coisa estilo academia de ginástica. E muitos jovens veem o sexo assim pela
primeira vez e passam a achar que é tudo mecânico. No que isso vai dar,
sinceramente, não sei. Não tenho 14, 15 anos para saber.
Você morou em São Paulo, em Paris, e agora mora no campo.
Por que fez essa opção?
Meu marido viaja muito, ele tem escritório na Suíça. Morei
na França, estudei em São Paulo, mas decidi que não queria ficar fora do
Brasil, longe dos meus filhos e das minhas duas netinhas. Essa é uma casa de
família. Na verdade, não é só uma casa, é um espaço de memória. Estou aqui há
dez anos e não tenho saudades da cidade. Vou a São Paulo todos os meses visitar
meus filhos, que estão todos muito bem encaminhados. Um tem uma agência de
publicidade, outro está no mercado financeiro e minha filha é diretora de
marketing de uma empresa. Acho que essa coisa de fugir da cidade é muito boa.
Recomendo. Ainda mais com as redes sociais. Aqui tenho espaço para escrever,
refletir, mas também não perco o que está acontecendo no mundo.
Então você não tem problemas com a solidão?
Adoro ficar sozinha. Tenho o meu jardim. Gosto dessa vida
tranquila, de acordar com o galo cantando. E recebemos amigos no fim de semana,
meus filhos vêm me visitar. E aqui a gente conhece todo mundo, é uma relação
mais íntima com as pessoas. Sou uma grande entusiasta da cidade pequena. E acho
que isso pode ser uma saída para a geração de vocês.
Disponível em
http://revistatpm.uol.com.br/revista/111/paginas-vermelhas/mary-del-priore.html.
Acesso em 15 mar 2014.