quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Bisturi não é varinha de condão

Após encontro de alguns leitores do blog Cantinho-da-Glória, estes resolveram entrevistar a criadora e administradora do blog, Glória W. de Oliveira Souza. O objetivo era saber sobre a criação da ferramenta, que está hospedada pelo Google e conhecer, um pouco mais, como pensa a autora que resolveu abordar um tema pouco difundido na internet.


Cantinho-da-Glória – Qual é a sua formação?

Glória W. de Oliveira Souza – No meu sort bio costumo apontar que sou Comunicóloga. Educadora. Jornalista. Consultora Empresarial. Designer de Vitrina. Visual Merchandiser. Artista Plástica. Crítica de Arte. Pesquisadora. Possuo graduação em Educação Artística (1978); Artes Plásticas (1979) e Jornalismo (1984). Mestrado em Comunicação Social (1999). Doutorado (incompleto) em Design e Arquitetura. Sócia-diretora da Canalw Difusão do Conhecimento. Responsável pelos blogs gwConsultoria e Cantinho-da-Gloria. Docente universitária e membro de organização nacional e internacional na área de comunicação social.

CG – Por que você resolveu criar o blog sobre a temática da transexualidade?

GS – A partir do momento em que percebi que o assunto não estava sendo devidamente explorado, principalmente pelas mídias tradicionais e digitais. Havia muitas informações difundidas de forma inadequada. Em vez de ajudar a esclarecer, confundia ainda mais os leitores.

CG – Você poderia dar um exemplo?

GS – Um assunto que ainda persiste, infelizmente, que é a confusão entre identidade de gênero e orientação sexual.

CG – Qual é a diferença?

GS – De maneira bem simplória, para melhor compreensão, diria que identidade de gênero é como a pessoa se identifica em relação do gênero, independente de sua constituição biológica. Admito a existência de três tipos de identidade de gênero (externalizável): feminina, masculina e androgênica. Já orientação sexual, que indica por quais gêneros ela sente-se atraída, seja física, romântica ou emocionalmente, e é internalizável. Pode ser assexual, bissexual, homossexual e heterossexual. Ao aprofundar no tema, produzi uma Grade Diagnóstica da Sexualidade (GDS), onde também identifico a categoria da corporeidade (referente a anatomia biológica) onde aparecem as figuras de fêmeas, machos e intersexos.

CG – E existe diferença entre travesti e transexual?

GS – De maneira bem simples diria que a travestilidade, geralmente, é representada por pessoas designadas homens no nascimento, mas que procuram a construção do feminino, através de suas vestimentas e pode incluir, ou não, também procedimentos estéticos e cirúrgicos. É raro, mas também existem travestis em pessoas designadas mulheres ao nascer. Já a transexualidade  diz respeito ao indivíduo que sofre com a sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo biológico. Para tanto, faz uma transição para um gênero diferente ao do nascimento e, de formas diferentes, perseguem a cirurgia de transgenitalização, o que não ocorrem com as travestis. E, por isso, a população transexual conta com ações específicas promovidas por profissionais e gestores.

CG – Como assim?

GS – Os transexuais contam com o suporte do Conselho Federal de Medicina, que regulamentou a prática da cirurgia de transgenitalização. O Ministério da Saúde instituiu o processo transexualizador, que define regras para a mencionada cirurgia seja patrocinada pelo governo federal. E isso ocorre porque esses gestores compreendem a transexualidade como um fator de saúde, ou seja, precisa ser tratado para o bem estar da pessoa, conforme reza a Constituição e por ser admitida pela Organização Mundial de Saúde como doença. Eis um dos benefícios da patologização. É vista, pelos envolvidos, como tratamento preventivo (medicina preventiva) e não curativo (medicina curativa).

CG – E quanto transexuais existem no Brasil?

GS – Ninguém sabe ao certo. Há muitas especulações. Aliás, só especulações. Estimativa difundida mundo afora, e que são adotadas sem questionamentos, apontam números conflitantes, pois ninguém sabe como surgiram. São dados milagrosos e a ciência não trabalha com milagres. Então o que vemos são superlativos nos números, de acordo com o interesse de cada um. Estou concluindo um estudo que indicam existir no Brasil não mais do que cinco mil pessoas transexuais. Meu estudo abarca o período de 2000 a 2014.

CG – Como surgiu o blog? Já tinha alguma experiência no tema?

GS – Pesquisei muito rapidamente sobre a temática na rede e percebi que havia um vazio. Então decidi utilizar uma ferramenta de fácil acesso e que eu não interferisse no conteúdo com minhas observações pessoais. Seria tendenciosa. Escolhi então por difundir o assunto tão somente com as postagens que encontrava na internet fazendo republicação. A única mudança que me permiti foi fazer uma edição visual, adequando ao modelo sugerido pelo Google, mas sem alterar o conteúdo. O objetivo do blog é deixar que o leitor criasse sua própria opinião sobre a matéria postada, tanto é que as referências estão no fim de cada texto. Quanto a experiência, participei como autora com o capítulo “Um olhar de dentro: apontamentos iniciais acerca da transexualidade”, parte do livro “Minorias sexuais: direitos e preconceitos” (2012), organizado por Tereza Rodrigues Vieira. 

CG – E como foi a recepção ao blog?

GS – Não foi aquilo que eu desejava. O blog surgiu em setembro de 2011 e em setembro do ano passado, fiz um levantamento. Das quase 800 postagens, nesse período o acesso foi de um pouco mais de 26 mil no Brasil; quase 21 mil na Russia e 10 mil nos Estados Unidos. O acesso chegou mais via Facebook. A postagem mais vista não chegou a 500 acessos.

CG – Seria por causa da temática do blog?

GS – Não creio. O que se recomenda, nas redes digitais, é que se tente aproximar o máximo possível do público-alvo desejado. E a transexualidade é um nicho. Julgo que, apesar do assunto estar mais presente na mídia atualmente, o assunto não é tão atrativo e nem necessário para o dia-a-dia das pessoas.

CG – Não é necessário? Explica.

GS – Para as pessoas que não fazem parte deste universo, quer diretamente como os viventes; bem como os que têm relação indireta, como médicos, psicólogos, assistentes sociais e outras categorias profissionais, o assunto tem importância apenas enquanto informação. Mas nem mesmos os seres viventes do fenômeno se interessam em aprofundar o conhecimento sobre o tema. O foco deles têm sido outro.

CG – Quer dizer que os próprios transexuais não se interessam pelo assunto?

GS – Infelizmente sim. Para quê ler se as informações circulam mais rapidamente pela forma oral, redes sociais, encontros casuais. E o resultado disso (falta de interesse) é a disseminação de informações, muitas vezes, equivocadas, prevalecendo mais as versões do que os fatos. E não devemos nos esquecer de que a temática tem forte apelo emocional. Tanto é que é muito elevado o índice de automedicação, devido, principalmente de que sonhos e informações muitas vezes se conflitam. Então se acredita no primeiro milagreiro que promete corpo perfeito sem esforços e em pouco tempo. E aí o bicho pega...

CG – Explica melhor...

GS – Costumo dizer que tenho encontrado muitas pessoas que fazem parte desse universo e que se pautam pelos “três is”: ignorância informativa (que difere da comportamental); ingenuidade e inocência. Como é uma população muito carente, a necessidade de acreditar em sonhos é muito presente. Muitas delas procuram a cirurgia de transgenitalização por julgar que, após a feitura da mesma, a vida delas mudará radicalmente, quanto a aceitação da família, proposição de emprego, contração de matrimônio e dissipação todo e qualquer tipo de bullying social. Ledo engano. Tenho repetido para essas pessoas que bisturi não é varinha de condão.

CG – Como identificar quem é travesti ou transexual?

GS – Não é fácil e nem simples. No capítulo do livro que participei, digo que isso só será possível por intermédio dos microssinais e nanossinais, devido aos avançados estudos das neurociências, que vem abrindo caminho para melhor conhecer essa população. Swaab, em sua obra recente (2014), “We are our brains: a neurobiography of the brain, from the womb to Alzheimer’s”, aponta que a transexualidade ocorre no cérebro nos primeiros meses de gravidez, no útero. Portanto, a transexualidade é cerebral e não construção social, como muitos apregoam. Ninguém se torna transexual, nasce-se transexual.

CG – Quais são as carências desta população?

GS – De todo o tipo. As mais gritantes estão no campo familiar, escolar, social (incluindo aqui necessidade de renda), afetivo e, principalmente, na auto-compreensão do próprio fenômeno. A confusão que a sociedade faz na identificação e classificação do ser transexual também atingem aos próprios seres viventes. Tanto que é comum encontrarmos seres que desejam fazer mudanças corporais e buscar identificação com o gênero oposto ao biológico, mas fogem de terapias, que poderiam ajudar na compreensão da situação em que vivem. O comportamento pode demonstrar o medo da perda dos sonhos desejados e que talvez não seja tão verdadeiro.

CG – Por que isso ocorre?

GS – Primeiro vivemos numa “sociedade espermatozóica”, onde só têm valor quem é o primeiro ou o mais “saudável”. Este termo é usado como antônimo de doença. Transexualidade não é doença. Tanto é que, quando da descoberta e diagnóstico adequados, é fator de felicidade e não sofrimento. Mas faz parte do CID (Classificação Internacional de Doenças), instrumento da Organização Mundial da Saúde (OMS), no item F64-0. Também está no DSM (Manual de Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais), criado por psiquiatras norte-americanos e que é seguido como uma bíblia pelo resto do mundo. Tanto é que muitos dos profissionais que tratam do tema – inclusive no Brasil – usam o termo “transexualismo”, cujo sufixo, de origem grega, exprime a ideia de, dentre outros fenômenos, doença. É preciso, portanto, que todos que estejam envolvidos com esta população tenham um olhar mais atualizado. Isto não significa aceitar tudo e nem rejeitar tudo. É preciso mais aprofundamento.

CG – Como isso seria possível?

GS – Primeiro ver o fenômeno a partir da medicina holística, que é a abordagem de tratamento médico baseada na teoria de que os organismos vivos e o meio ambiente (não confundir com ecologia) funcionam juntos como um todo integrado, sob os aspectos físico, psicológico e social. A partir daí, somar-se ao que eu chamo de “duplo agá” (HH): humanismo holístico. O humanismo é uma filosofia moral que coloca os humanos como principais, numa escala de importância. Mas isso não ocorre na prática. Só vemos isso em discursos de quem detém o poder, qualquer que seja. Esse novo enfoque requer sensibilidade, desprendimento e estudo, assim seria possível ver “os olhos brilharem” dos transexuais quando abordarem suas próprias situações. Mas o que prevalece, hoje, são os medos e sonhos.

CG – Os profissionais envolvidos com essa população têm receio em buscar esse “novo olhar”?

GS – Eu trocaria a palavra ‘receio’ por desconhecimento. Adicionaria ainda o preconceito que vigora, infelizmente, em muitos desses profissionais que atuam junto a este público. O preconceito é velado, mas ele “grita silenciosamente”. André Oliveira, pesquisador sobre comportamento, diz que as pessoas, precisamente as urbanas, são conservadoras e liberais. São defensoras de valores superestabelecidos como a família, o casamento, a segurança e a carreira. Entretanto, por outro lado, querem testar coisas novas, e tem dificuldade em lidar com a homossexualidade, novas relações familiares e as drogas. Aliás, eu não gosto de utilizar o termo ‘preconceito’, prefiro definir este ato como “bullying dissimulado”, pois se trata de uma situação que se caracteriza por agressões intencionais, verbais ou físicas, feitas de maneira repetitiva, mas de forma sutil, quase imperceptível.

CG – Você pode falar um pouco mais sobre esse desconhecimento?

GSEm conversas informais com vários profissionais e estudantes de várias áreas, percebi que o tema da transexualidade sequer é mencionado em uma única aula. Isso é preocupante quando ocorre, principalmente, em cursos como medicina e psicologia. Estou formatando uma pesquisa para ver se isso se confirma. O resultado disso é o que ouvi, certa vez, de uma profissional de psicologia ao me dizer: ”se uma pessoa chega para mim e diz que é transexual, quem sou eu para dizer que não é”. Ela se esquece de que dentro desta população há pessoas com transtornos diversos – corrigíveis – projeções, traumas e outras manifestações que podem ser passageiras e não configurar, necessariamente, caso de transexualidade. Não se trata de rejeitar o sujeito auto-declarante, mas de permitir um diagnóstico minimamente técnico-científico.

CG – Mas esse conhecimento não passa por uma educação melhor?

GSMas educado todo mundo o é e o tempo todo. É que há certa confusão entre educação e escolarização. O pai que bate na mãe está educando o filho. Os que furam a fila de um banco estão educando os demais para a mesma prática ou coisa pior. A mãe que trai o marido ou esconde uma fruta na sacola dentro de um supermercado está educando os filhos sobre as mesmas práticas. Portanto, tudo é educável. O que se deve é melhorar as formas e formatos da escolarização (em todos os níveis) para torná-la atraente e dentro das necessidades dos aprendizes. Hoje a escolarização (do maternal a pós-graduação) é um martírio. Só há adesão devido a obrigação e imposição.

CG – Muitos transexuais, inclusive, abandonam os estudos devido ao preconceito, não?

GSPode ter sido. Hoje isso já não é mais desculpa. Qualquer pessoa pode continuar – ou iniciar – a escolarização de dentro de casa, em qualquer momento e qualquer nível escolar. Certa vez encontrei uma pessoa transexual que passava mais de cinco horas diárias na frente do Facebook e tinha abandonado os estudos devido ao que você disse. Então sugeri que ela reservasse meia hora por dia para qualquer tipo de curso. Resultado: ela deixou de conversar comigo, ficou com raiva. Então tenho minhas dúvidas quando identifico esses comportamentos vitimizados, tentando me fazer crer que todo o mal contra ela vem da sociedade.

CG – Acredita que uma campanha sobre isso não ajudaria, como fazem contra o preconceito?

GSDa maneira como é feita hoje, não, não acredito que ajuda a mudar nada. Só reforça o que existe. As campanhas, qualquer que seja o tema, precisam mudar de estratégia e técnica. Deixar de ser racionais na linguagem (quer textual, quer icônica) e partir para apelos emocionais. É isso que fazem a propaganda e publicidade de produtos. E dentro do foco pretendido. Se a necessidade é tratar sobre trabalho, não há porque o foco ser na sexualidade. O que é preciso é demonstrar a qualificação da população objeto da campanha. Costumo brincar que, para uma vaga de recepcionista, por exemplo, o que menos importa são as identificações sexuais (gênero ou orientação), mas sua qualificação para atender e receber. Ninguém irá pedir para levantar a saia ou abaixar as calças para decidir se aceitará ou não ser atendido por aquela pessoa. Aliás, termino o capítulo no livro que já mencionei que não há transexualidade abaixo da linha do umbigo. E sabe por quê? Porque está no cérebro.

CG – Qual é a sua análise sobre as políticas públicas para travestis e transexuais?

GSNão acredito que existam. O termo está sendo muito utilizado. Virou um mantra, principalmente por parte de gestores. Podemos entender a nomenclatura como uma espécie de planejamento por parte de um ente público. Mas como pode se planejar se não tem elementos concretos que possa alimentar esse plano? Um documento público da Prefeitura de São Paulo deixou isso em evidência. É uma pena. Planejamento sem elementos que alimentam os preceitos do plano, não é planejamento, é especulação. Não é de se espantar que os resultados sejam frustrantes. Para ambas as partes. Grosso modo, conforme Graças Rua, política pública envolve decisão sobre diversas ações estratégicas (planejamento racional – policy) e os atores receptores (público-alvo – politics). E a pergunta que fica é: como praticar políticas públicas sem conhecer o perfil e as necessidades do público-alvo? E por falar em público-alvo, a sua pergunta abarca duas populações distintas. Portanto, cada uma requer uma política própria.


CG – Pode dar detalhes?


GS – Sim, duas populações: a de travestis e a de transexuais. Cada uma requer um planejamento, diagnóstico e prognóstico próprios. São fenômenos diferentes, apesar das semelhanças. Um exemplo vivo foi a criação do Ambulatório para Travestis e Transexuais (ASITT) pelo governo do Estado de São Paulo junto ao CRT. Uma boa ideia mal aplicada. Em entrevista informal não gravada, um dos diretores me disse que o serviço foi parar lá no CRT porque foi rejeitado em outras oito unidades médicas do Estado. Teria dito o secretário da saúde da época (2009): “vocês já estão acostumados a lidar com uma população estigmatizada”. Com essa visão, o serviço foi implantado no local. Só que os profissionais daquela unidade têm suas expertises na área curativa (transexualidade requer atendimento preventivo) e são especialistas no atendimento aos portadores de HIV há mais de 30 anos. E agora? Resultado: visão distorcida do fenômeno (o protocolo de atendimento deixa isso evidente – portaria 1/2010); briga de poder entre os profissionais (“para mim, este ambulatório, em sua concepção, surge de fontes que, entre si, são antagônicas. Ele é o resultado do encontro de águas conflituosas”. As palavras estão em Guimarães A., Bagoas, n. 10, 2013), e inúmeros conflitos entre os usuários do ASITT e portadores de HIV, sem falar em uma crise sem precedentes, envolvendo pacientes e profissionais, ocorrida ano passado dentro do ASITT. Repito: uma boa ideia mal utilizada, devido a disputa de egos, briga por poder, interferência ideológica e escassez de mão-de-obra e material que compreendessem as premências desta população.

CG – Você disse que o Ministério da Saúde estabeleceu o processo transexualizador? O que é isso?

GS – Resumidamente é uma regulamentação feita pelo ministério a partir das resoluções do Conselho Federal de Medicina relativa ao atendimento, no nível do governo, sobre o tratamento ambulatorial e cirúrgico para a população transexual. A última regulamentação é de 2013 e trata do acompanhamento clínico (considerado de média complexidade), pré e pós-operatório (alta complexidade). O paciente precisa ter entre 21 e 75 anos e participar, por no mínimo, dois anos de acompanhamento antes da operação e um ano no pós-operatório. Esses atendimentos são feitos em unidades hospitalares nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Goiânia e em todos há equipe multiprofissional composto por médicos psiquiatra, endocrinologista, clínico, ginecologista obstetra, cirurgião plástico, urologista, além de psicólogo, assistente social e enfermeiro.

CG – Quais são os avanços em termos de legislação para esta população?

GS – Eu não tenho esses dados. Mas não creio que combates em relação ao bullying, criação de empregos, compreensão familiar, imposição de novos conhecimentos sejam efetivos por meio da legislação. O Brasil possui mais de 180 mil leis – o que dá uma média de 18 leis por dia – muito das quais obsoletas, inaplicáveis, irreais, inúteis e inconstitucionais. Uma sociedade não se muda por decreto, mas por reeducação social e disponibilidade de escolarização.

CG – Para finalizar...

GS – Agradecer a oportunidade da conversa e esperando que, a partir deste bate-papo, o blog possa contribuir mais para a difusão do conhecimento desta temática, que faz parte de todas as sociedades. 

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Transexualização em narrativas de histórias de vida sobre a infância

Alexsander Lima da Silva; Adélia Augusta Souto de Oliveira 
Universidade Federal de Alagoas - UFAL, Maceió -AL

Resumo: Análise psicossocial do processo de transexualização na infância, por meio das narrativas da infância de três transexuais masculinos e três transexuais femininos, sendo dois representantes de cada geração – mais nova, do meio e mais velha. Identifica-se a produção histórica dos significados de gênero e suas vivências sentidas. Utiliza o referencial teórico e metodológico qualitativo da Psicologia Social e dos Estudos de Gênero. Realiza uma análise de conteúdo descritivo–interpretativa das histórias de vida. As infâncias foram marcadas pelos questionamentos sobre si mesmos e da sua diferença em relação às outras crianças e adaptar-se para serem aceitos. Destacam-se as brincadeiras de criança e estratégias de disfarce na aparência para serem meninos e meninas. Essas são formas de atender aos padrões heteronormativos e evidenciam aspectos fossilizados de significação. Por outro lado, a aceitação por parte dos familiares indica importante elemento de ruptura e de possibilidade de viver a diferença.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Fonoaudiologia e transgenitalização: a voz no processo de reelaboração da identidade social do transexual

Lorena Badaró Drumond
Fonoaudióloga Mestranda em Psicologia - UFES 


Resumo: Nos consultórios de fonoaudiologia é crescente a demanda de transexuais, principalmente masculinos, em busca da adequação da voz ao gênero pretendido por eles. Segundo Silveira (2006), transexual é o indivíduo que tem convicção de não pertencer ao seu sexo biológico. Rejeita o próprio corpo e suas características genitais por desenvolver uma identidade de gênero relativa ao sexo oposto ao seu. O tema da homossexualidade será abordado a partir do olhar da fonoaudiologia, mais restrito à questão da saúde, e da psicologia, no sentido da construção social. Através da revisão de literatura, a presente pesquisa se propôs buscar compreender o papel que a voz ocupa na construção da identidade social dos transexuais masculinos e em que se baseiam as demandas apresentadas por esse público não só na clínica fonoaudiológica mas também em relação à estética corporal.


terça-feira, 7 de julho de 2015

Voz do transexual masculino

Sirlei Bergel 
CEFAC - Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica
Porto Alegre-RS - 1999

Resumo: É de fundamental importância que o transexual masculino desenvolva uma conduta social feminina na sociedade. E sendo a voz fundamental na identificação do falante, descreveram-se os parâmetros fonoaudiológicos e os procedimentos cirúrgicos necessários para a aquisição da voz com características femininas. Os fatores fonoaudiológicos fundamentais são: variação na entonação; mudança na ressonância do trato vocal através da retração dos lábios e anteriorização da língua; e elevação da freqüência fundamental. Também é importante que sejam observados os aspectos sócio-culturais como o vocabulário, a gramática, o enunciado e os gestos na produção da voz com características femininas. A cirurgia da aproximação cricotireóidea ou a cirurgia da criação de uma membrana na comissura anterior das pregas vocais podem elevar o pitch; mas, sendo este apenas um dos fatores envolvidos na modificação vocal para a forma feminina e em função dos riscos e dos resultados nem sempre positivos da cirurgia, acredita-se que esta seria indicada nos casos em que, com fonoterapia, o transexual masculino não consiga uma Fo acima de 155Hz, que é considerada como limite inferior para a identificação da voz como feminina.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Avanços científicos trazem novos olhares sobre a paternidade

Chris Bueno e Fernanda Grael 
11/05/2015


Um só embrião, mas com o material genético de três pessoas. Parece ficção científica, mas recentemente o Parlamento Britânico aprovou um novo procedimento de fertilização in vitro que utiliza o material genético de um homem e duas mulheres para formar o embrião. O procedimento, que está sendo estudado e discutido desde 2007, tem o objetivo de eliminar doenças genéticas. 

Mutações em genes das mitocôndrias (organelas presentes no interior das células animais, mais especificamente no citoplasma) causam doenças que afetam os sistemas nervoso e muscular da criança, podendo levar ao desenvolvimento de cegueira, epilepsia, retardo mental, fraqueza muscular e problemas cardíacos, entre outros. Mulheres que têm essa mutação transmitem esses problemas a seus filhos, pois as mitocôndrias são recebidas exclusivamente da mãe – elas já estavam no óvulo que gerou o bebê. 

 O que esse novo procedimento faz é um “transplante de mitocôndrias”, ou seja, ele substitui as mitocôndrias mutantes por mitocôndrias saudáveis de óvulos doados. Para isso, transplanta-se o núcleo do óvulo da mãe para dentro do óvulo de uma doadora saudável, contendo mitocôndrias normais. 

“Pensem numa célula como um ovo: o núcleo é a gema e o citoplasma é a clara. No núcleo ficam 99,998% dos nossos genes, que vêm metade do pai (no espermatozoide) e metade da mãe (no óvulo). Já as mitocôndrias ficam na clara, no citoplasma – e elas contêm os outros 0,002% dos nossos genes. O funcionamento correto desses poucos genes é fundamental para que nossas células produzam energia”, explica a bióloga Lygia da Veiga Pereira Carramaschi, professora titular no Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biologia (IB) da USP. 

Esse óvulo corrigido é fertilizado pelo espermatozoide do pai, e assim dará origem a um bebê sem as mutações nas mitocôndrias. Geneticamente, ele será 99,998% filho biológico de seus pais e 0,002% da mulher doadora de mitocôndrias. Segundo os pesquisadores, o bebê desse óvulo teria os traços genéticos de sua mãe biológica, mas levaria também o DNA mitocondrial da doadora, ficando livre das doenças que poderiam ser herdadas da mãe. “Daí dizermos que essas crianças terão um pai e duas mães – e aqui, muito cuidado: filho biológico, porque do ponto de vista social, pai e mãe são os que criam a criança”, enfatiza Carramaschi. 

Apesar de poder evitar uma série de doenças genéticas, a técnica gerou grandes discussões. “Apesar de ser uma alteração mínima e por um motivo muito nobre, qual será o limite? Além disso, do ponto de vista legal, deveremos modificar as definições de “paternidade” e “maternidade” para que a doadora de mitocôndrias não venha a ter direitos sobre a criança? De qualquer modo, são questões que devem ser consideradas”, alerta Carramaschi. 

Após a aprovação do procedimento pelo Parlamento Britânico, o diretor da ONG Human Genetics Alert, David King, criticou o procedimento, comparando-o à criação de um “Frankenstein”. “Assim como a criação do Frankenstein foi produzida a partir da junção de partes de muitos corpos diferentes, me parece agora que cientistas e seus assistentes bioéticos ultrapassam o limite do grotesco, das normas da natureza e da cultura humana”, avalia. 

Os cientistas também questionam a segurança do procedimento a longo prazo. A dúvida é se a técnica poderia ter alguma consequência na saúde dessa criança quando ela se tornasse adulta, como maior propensão ao desenvolvimento de câncer, por exemplo. No entanto, a técnica já foi utilizada por um curto período nos Estados Unidos, até ser proibida pela Food and Drug Administration (FDA, agência norte-americana que regula alimentos e procedimentos de saúde). E algumas crianças foram geradas com esta técnica: entre elas Alana Saarinen, nascida em 2000, que hoje é uma jovem saudável. 

Espermatozoide feminino, óvulo masculino 

Criar um espermatozoide feminino parece ficção, mas a ciência vem mostrando que é possível. Cientistas da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, afirmam ter criado espermatozoides a partir de células-tronco da medula óssea feminina – abrindo caminho para o fim da necessidade do pai na reprodução. 

A pesquisa foi publicada primeiramente na revista científica Reproduction: Gamete Biology, em 2007, e ainda está em andamento. No estudo, os pesquisadores extraíram as células-tronco da medula óssea e separaram uma subpopulação especial de células. Elas foram cultivadas em placas de vidro, recebendo substâncias que favorecem a sua diferenciação. Os pesquisadores identificaram, então, a presença de células-tronco espermatogônicas (fase inicial do desenvolvimento dos espermatozoides). 

No ano passado, os cientistas conseguiram transformar células-tronco da medula óssea em espermatozoides imaturos. E o próximo passo seria submeter os espermatozoides primitivos à meiose, um processo que permitiria a maturação, tornando-o apto para a fertilização. A técnica já foi testada em camundongos. 

A princípio, não haveria barreiras para criar espermatozoides femininos por meio desse procedimento. No entanto, a “mulher-pai” só poderia ter filhas, já que não carrega o cromossomo Y. 

Em entrevista à última edição da revista New Scientist, Karim Nayernia, um dos pesquisadores envolvidos no estudo, disse estar esperando a permissão ética da universidade para dar continuidade ao trabalho. “Em princípio, eu acredito que seja cientificamente possível”, disse. 

Além disso, uma pesquisa no Japão vem apontando para a possibilidade de criar não apenas espermatozoides femininos, mas também óvulos masculinos. A pesquisa, realizada na Universidade do Japão, foi publicada na revista Science em 2012. A partir de camundongos transgênicos (com genes de outra espécie), os pesquisadores obtiveram células-tronco embrionárias e pluripotentes induzidas (iPS, derivadas do organismo adulto). A partir dessas células eles geraram células precursoras dos óvulos, colocaram-nas junto a um agregado de células do ovário de roedores e formaram uma espécie de ovário artificial. 

Esse conjunto de células foi implantado em fêmeas de camundongos para concluir o processo de maturação. Quando ficaram maduros, esses óvulos foram extraídos e colocados em “mães de aluguel”, submetidas à inseminação artificial. Após a junção com espermatozoides, os óvulos deram origem a filhotes saudáveis. 

Em tese, pela regressão a um estágio tão primordial de desenvolvimento, seria possível manipular as células para dar origem a espermatozoides. E, indo mais além, seria possível criar espermatozoides a partir de células femininas ou óvulo a partir de células masculinas Ou seja: casais do mesmo sexo poderiam ter um filho biológico, carregando 50% dos genes de cada genitor. 

Clones 

Se por um lado a ciência pode fertilizar um embrião com o material genético de três pessoas, ou gerar espermatozoides femininos e óvulos masculinos, por outro também pode utilizar apenas o material genético de uma única mulher. Esse é o caso da clonagem – procedimento que, no caso de humanos, é proibido. 

Para que ocorra a clonagem humana reprodutiva é necessário uma célula somática, que pode ser extraída do tecido de qualquer criança ou adulto. O núcleo dessa célula é retirado e inserido em um óvulo, depois implantado em um útero (uma barriga de aluguel). “No caso da clonagem humana prescindiríamos da figura masculina, pois seriam necessários óvulos, células da pessoa a ser clonada e útero”, aponta Carramaschi. 

A clonagem é vista como uma possibilidade para casais inférteis, porém, um documento assinado em 2003 pelas academias de ciências de 63 países, incluindo o Brasil, proíbe a clonagem humana reprodutiva. E, de acordo com o documento, o procedimento é ainda muito arriscado, abrindo diversas discussões sobre a ética do processo. 

Em 2002, a diretora Clonaid, a química francesa Brigitte Boisselier, anunciou que havia nascido o primeiro bebê humano clonado. Segundo ela, os pais da criança contrataram a empresa pois o pai era infértil, e o bebê foi gerado com células da pele da mãe. Porém, após intervenção judicial, os envolvidos saíram de cena e nunca foram feitos testes que atestassem a veracidade desse fato, nem a apresentação do próprio bebê. 

Por enquanto, a clonagem reprodutiva é considerada ineficiente. De acordo com os testes feitos em animais, a maioria dos clones morre logo no início da gestação e os outros têm defeitos ou anormalidades. Sem contar as barreiras éticas para levar adiante as pesquisas. 

Sociedade 

Essa mudança do papel do pai – ou mesmo sua supressão – proporcionada pela ciência ainda está longe de acontecer. E ainda que as barreiras sejam ultrapassadas pela ciência, as questões éticas se manteriam. A maior parte da sociedade vê com receio a manipulação genética em embriões humanos. De acordo com a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), assinada no anos 1990, todas as pesquisas na área devem levar em conta suas implicações éticas e sociais. 

“Imagino que, mais do que a ciência, a sociedade já vem modificando a definição do que é ser pai. Quem é o pai biológico? Fácil, o dono do espermatozoide que deu origem à criança. Mas quem é o pai social? Esse é quem cuida”, afirma Carramaschi.

Disponível em http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=113&id=1367. Acesso em 12 mai. 2015.