sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A assexualidade e o DSM

Elisabete Regina Baptista de Oliveira
Quinta-feira, 26 de maio de 2011


Hoje falaremos um pouquinho sobre um documento nascido nos Estados Unidos, o qual classifica, segundo critérios nem sempre claros, os chamados transtornos mentais. Trata-se do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - mais conhecido como DSM, na sigla em inglês -, publicado desde 1952 pela Associação Americana de Psiquiatria. Este documento constitui a fonte de referência mais influente sobre o que é considerado “normal” ou “anormal” em saúde mental, não somente nos Estados Unidos, mas também em outros países.

Atualmente em sua 4ª. edição (DSM-IV), o Manual é utilizado para diagnóstico e classificação de transtornos mentais por profissionais da área da saúde mental, convênios médicos, clínicas, hospitais, indústrias farmacêuticas e outras instituições do campo da saúde nos Estados Unidos. A Associação Americana de Psiquiatria tem, portanto, o monopólio do diagnóstico e da classificação dos transtornos mentais, o que impulsiona um mercado formidável de tratamentos e medicamentos para milhões de pessoas, movimentando milhões e milhões de dólares por ano.

Apesar das críticas e questionamentos ao Manual levantados por diversas áreas do conhecimento (afinal, que confiabilidade pode ter um diagnóstico de transtorno mental que segue uma classificação pré-existente, sobretudo se tal diagnóstico leva a tratamentos e medicamentos, cuja necessidade dificilmente pode ser comprovada?), o DSM continua sendo a bíblia da psiquiatria americana.

A cada nova edição do documento, novos transtornos são acrescentados ou retirados, novas classificações são propostas e criadas, caminhando-se cada vez mais para a biologização dos distúrbios. Trata-se de um mecanismo de medicalização dos comportamentos sociais, que é um tema que temos repetido aqui no Blog desde o início. A primeira versão, de 1952, listava um total de 106 transtornos mentais; a versão mais recente, de 1994 traz 357 transtornos.

Para se ter uma idéia da importância política do DSM para a sociedade como um todo, basta lembrar que somente em 1973, quando o documento retirou a homossexualidade de sua lista de transtornos mentais, é que abriu-se as portas para as lutas pelos direitos civis de pessoas homossexuais nos Estados Unidos, e também no resto do mundo. Portanto, essas classificações vão muito além do interesse de médicos e pessoas portadoras de transtorno; elas têm um impacto social que não pode ser desconsiderado.

A esta altura, o leitor já deve estar concluindo que o DSM também medicaliza, patologiza e biologiza diferentes condutas sexuais da população, classificando-as como transtornos que necessitam de tratamento. E é justamente nessa perspectiva que encontramos a assexualidade fazendo parte dessa classificação, ainda que a palavra assexualidade não figure no Manual.

A pesquisadora Jane Russo, em trabalho de 2004, observa que, ao tratar dos transtornos relacionados à sexualidade, o Manual traz uma concepção do que significa “sexualidade normal”. A 4ª. versão do Manual define disfunção sexual como “uma perturbação nos processos que caracterizam o ciclo de resposta sexual ou por dor associada com o intercurso sexual.” O ciclo de resposta sexual compreende as fases de desejo, excitação, orgasmo e resolução. Para cada uma dessas fases, são listados transtornos específicos.

O que nos interessa aqui é o chamado Transtorno do Desejo Sexual Hipoativo, definido pelo Manual como “deficiência ou ausência de fantasias sexuais e desejo de ter atividade sexual.” Jane Russo destaca que, ao referir-se a “deficiência de fantasias” ou “baixo desejo”, o Manual sugere que existe um nível normal de fantasias e desejos, e que estar abaixo desse nível significa ser portador de um distúrbio. Como a assexualidade é caracterizada pela ausência de desejo e/ou atração sexual, isso a coloca automaticamente na lista dos distúrbios sexuais, segundo o DSM. Ou seja, para o Manual, quem não tem interesse pela atividade sexual é necessariamente portador de um transtorno mental.

Ciente disso, o movimento assexual norte-americano, mais precisamente um grupo de trabalho composto por membros da AVEN (Asexual Visibility and Education Network) tem atuado em conjunto com membros da Associação Americana de Psiquiatria para que essa descrição seja alterada, pois para o movimento, a falta de interesse por sexo não deve ser considerada necessariamente um distúrbio, uma vez que muitas pessoas vivem muito bem sem sexo.

Está prevista uma nova edição do DSM a ser publicada em 2013, e é justamente nesta edição que os assexuais norte-americanos esperam poder incidir. A exemplo dos desdobramentos da retirada da homossexualidade da lista de transtornos mentais em 1973, espera-se que a modificação proposta pelo movimento assexual possa constituir o primeiro passo para o reconhecimento da assexualidade como orientação sexual.

Referência Bibliográfica.
RUSSO, Jane Araújo. Do desvio ao transtorno: a medicalização da sexualidade na nosografia psiquiátrica contemporânea. In: PISCITELLI, A.; GREGORI, M. F.; CARRARA, S. Sexualidades e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.


Disponível em <http://assexualidades.blogspot.com/2011/05/assexualidade-e-o-dsm.html>. Acesso em 09 ago 2011.

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