sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Mudar de corpo e voltar

Inês Raposo
30.11.2012 

Casos como este são uma minoria dentro de uma minoria - em Portugal só encontrámos um. Ainda assim, um diagnóstico errado de transexualidade pode levar homens e mulheres, pela segunda vez, à mesa de operações em busca do corpo que perderam.

Foi por volta dos cinco anos que Walt Heyer começou a sentir “que tinha que mudar, que era uma menina presa num corpo de rapaz.” A Perturbação de Identidade de Género, ou Transexualidade, começa por se manifestar, na maioria dos casos, ainda na infância. “A partir dos três anos surgem os primeiros sinais e, à medida que as crianças se vão apercebendo do seu corpo e do dos outros, intensifica-se a noção de que vivem num corpo errado”, afirma Décio Ferreira, cirurgião plástico português especialista em casos de transexualidade. “Viu aquele filme em que o protagonista acorda no corpo errado? É assim que estas pessoas se sentem. O corpo é normal, o cérebro é normal mas há uma desconformidade entre o sexo psicológico e o biológico”. 

“A minha avó costumava vestir-me com um vestido de chiffon roxo”, conta Walt Heyer ao Life&Style. No dia em que decidiu levar o segredo do vestido para casa dos pais, a notícia não foi bem recebida. Por não saber lidar com um filho que gostava de se vestir de menina, o pai encontrou na violência um modo para o tornar “mais homem e mais forte”. Enquanto isso, Walt era ainda vítima de abuso sexual por parte de um tio. “Tudo isto e a minha confusão sobre o género tornaram quase impossível que eu tivesse uma percepção clara sobre quem eu era enquanto crescia”, explica.

Em muitos casos, um dos principais desafios que os transexuais têm de enfrentar começa em casa devido à falta de compreensão dos familiares. “Existe uma maior aceitação das masculinidades femininas do que das feminilidades masculinas. Os rapazes são mais pressionados para se portarem como homenzinhos; as brincadeiras de meninas não são bem encaradas. Já com as raparigas é diferente, basta pensarmos nas ‘maria-rapaz’,” afirma Sandra Saleiro investigadora no projecto “Transexualidade e transgénero: identidades e expressões de género”, desenvolvido no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-IUL). 

Os anos passaram e com eles o roxo do vestido desbotou. Walt Heyer cresceu para ter um casamento feliz e dois filhos, mas a vontade de mudar de sexo não ficou para trás. Aos 42 anos, entrou no bloco operatório como Walt Heyer, e saiu uma pessoa diferente. Era Laura, Laura Jensen. “No princípio sentia-me óptimo. Estava feliz com o meu corpo e o meu género, apesar de ter sido rejeitado pela minha família e alguns amigos. Houve preconceito, mas entendo que as pessoas precisassem de me rejeitar, do mesmo modo que eu precisava de mudar de sexo. Funciona para os dois lados”.

O bilhete de ida

“Não sinto que tenha sido pressionado para fazer a operação. Foi mais uma questão de acreditar que os médicos e o psicólogo sabiam o que era melhor para mim.” Walt foi diagnosticado para tratamento cirúrgico por Paul Walker, um dos psicoterapeutas mais conceituados nos Estados Unidos da América em casos de Perturbação de Identidade de Género e também co-fundador da organização que escreveu as directivas internacionais para avaliar e aprovar potenciais candidatos à operação, a World Professional Association for Transgender Health (WPATH).

“Se os critérios da WPATH para o diagnóstico forem seguidos com rigor, o risco de fazer um diagnóstico errado é muito reduzido”, afirma Décio Ferreira. O cirurgião explica as diferentes etapas do processo de reatribuição sexual: “É preciso que uma equipa multidisciplinar faça o diagnóstico, depois uma outra equipa de profissionais dará uma segunda opinião. Se se confirmar que é mesmo uma Perturbação de Identidade de Género é que se avança para as fases seguintes”. Antes da cirurgia, os pacientes fazem psicoterapia, experimentam viver durante algum tempo como membro do sexo oposto em todas as interacções sociais e recebem tratamento hormonal, tudo num processo que pode demorar anos a concluir.

Júlia Pereira, do Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade (GRIT), acredita que toda a burocracia da mudança de género e o tempo que os procedimentos implicam “fazem com que os casos de arrependimento sejam muito raros.” A representante do GRIT não tem conhecimento de ninguém que se tenha arrependido de fazer a cirurgia de mudança de sexo e acrescenta que “quando um processo é tão demorado e complexo, só quem tem a certeza é que vai em frente”. Em Portugal, este tipo de procedimentos só foi permitido pela Ordem dos Médicos em 1995, passando depois a fazer parte do Serviço Nacional de Saúde.

“A literatura documenta que os casos de arrependimento são altamente minoritários. Claro que podem acontecer, mas serão sempre raros”, afirma Sandra Saleiro. A investigadora, que entrevistou 25 transexuais portugueses, não encontrou quem tenha mudado de opinião e alerta: “Alguns desses casos mais mediáticos já foram usados para reforçar argumentos daqueles que pretendem dificultar os processos de transição”. 

O regresso à origem

A falta de informação sobre transexualidade reflecte-se na inexistência de dados oficiais que permitam saber ao certo quantos homens e mulheres transexuais existem em Portugal. “Eu diria que cá temos pouco mais de 200 pessoas. Por ano devem aparecer uns 10 ou 12 casos novos”, afirma Décio Ferreira. E arrependimentos? “Só sei de um. E é muito específico. Foi um diagnóstico mal feito por profissionais que não sabiam o que estavam a fazer”, defende o cirurgião plástico. A pessoa de que fala é agora um paciente seu, Décio Ferreira está a ajudá-lo inverter a operação de mudança de sexo, não escondendo que “nunca vai voltar a ser igual” e que o processo reverte-se "dentro dos possíveis.” 

Devido à instabilidade psicológica deste paciente, a sua história chega-nos pelas palavras do médico: “Depois de o diagnosticarem com Perturbação de Identidade de Género, o rapaz, a família e amigos começaram a juntar dinheiro para pagar a operação na Tailândia. Lá confiaram no veredicto que vinha de Portugal e operam-no”. Ao regressar surgiram os primeiros problemas: “ele percebeu que afinal era naquele corpo feminino que não se sentia ele próprio, depois da operação é que tinha ficado no corpo errado”. Décio Ferreira lamenta “a incompetência dos que o diagnosticaram em apenas meia dúzia de semanas” e as consequências desse acto: “Nos dois anos que se seguiram à operação o meu paciente já se tentou suicidar três vezes”. 

O suicídio também passou pela cabeça de Walt Heyer quando se apercebeu de que tinha cometido um erro: “Comecei a estudar psicologia, a aprender mais sobre a mente e o corpo e foi então que me arrependi muito da operação. Percebi que é uma ilusão cosmética, hormonal e cirúrgica e que, por muito bem que eu parecesse, não tinha mudado de género”. Walt voltou a sentir-se um hóspede num corpo alheio e descobriu que tinha Transtorno Dissociativo de Personalidade, condição mental também conhecida como personalidades múltiplas – uma das quais mulher - e que isso pode ter contribuído para a falha no diagnóstico de transexualidade. “Não podia mais viver assim e comecei o caminho de volta para o sexo com que nasci”, explica Walt. 

Hoje Walt Heyer tem 72 anos, escreve livros sobre o tempo que viveu como mulher e defende que “os problemas não se resolvem com uma mudança de sexo”, procedimento que considera “de alto risco”. A sua experiência particular acabou por influenciar o modo como encara a transexualidade e generaliza os tratamentos a ela associados. Porém, para o cirurgião Décio Ferreira existe uma particularidade nos Estados Unidos que os distingue de Portugal: “Lá às vezes colocam os direitos à frente da ciência e esquecem-se que se uma pessoa diz que é o Napoleão isso pode não ser bem assim.” 

Disponível em http://lifestyle.publico.pt/artigos/313679_mudar-de-corpo-e-voltar. Acesso em 07 dez 2012

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