sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Lea T põe o dedo nas feridas do sistema de gêneros

Rita Colaço
28/01/2013

Ontem no Fantástico, revista semanal da Rede Globo, foi apresentada uma entrevista com a top model transexual Lea T, que recentemente se submeteu à cirurgia de transgenitalização.

Em seu depoimento, ela afirmou estar ainda um tanto sensível, em decorrência não apenas da intervenção cirúrgica tomada enquanto um ato médico, mas, sobretudo pelos seus aspectos psíquicos, emocionais.

Mesmo destacando esse aspecto, onde se encontra a perceber e refletir sobre sutilezas de sua nova realidade, Lea T foi capaz de proferir umas verdades incômodas.

Uma das mais contundentes, em minha opinião, foi declarar que não é a presença ou ausência de um desses órgãos que vai trazer a felicidade da pessoa.

Antes do ato transgenitalizador, disse, toda a sua expectativa de felicidade estava alicerçada na realização da cirurgia. Agora, feita a intervenção, se deu conta de que o ser humano é mais, muito mais do que a sua genitália.

No rastro dessa percepção de que existe possibilidade de vida saudável psiquicamente falando que não seja necessariamente a cirurgia, Lea também fez referência ao conteúdo de dominação simbólica existente na necessidade psíquica de se trangenitalizar, ao reconhecer que esse processo, não à toa chamado de “readequação”, visa muito mais à satisfação da sociedade do que à própria pessoa trans.

“Readequado” o ser no âmbito da norma de gênero, nada é transformado e toda a ditadura do binarismo pode continuar incólume, a enjeitar, humilhar, segregar, todas aquelas pessoas que por essa ou aquela razão não se enquadrem nas exíguas fronteiras do “masculino” e do “feminino”, como concebidos em nossa cultura.

Lea não falou em nome das pessoas trans. Falou apenas por si mesma. Pelo que está a pensar e sentir nesse momento ainda delicado de sua cirurgia recente.

E, em nome próprio, falando somente a partir de sua experiência, disse que não recomendava a cirurgia a ninguém, pois era um processo bastante doloroso.

Houve, porém, quem visse na entrevista transmitida pela Rede Globo dois dias antes do Dia da Visibilidade da pessoa Trans, um verdadeiro desserviço, na medida em que a emissora “apenas deu voz a uma única transsexual e fez com que sua verdade passasse a ser, aos olhos da sociedade, a verdade d@s milhares que lutam, todos os dias, contra a patologização, o preconceito e a precariedade”.

Respeito o direito de quantos opinem, mas, em verdade, não consigo ver onde é que a fala, pessoal, íntima e em muitos aspectos explicitamente provisória de Lea T. possa contribuir negativamente para a luta das pessoas transsexuais em prol do reconhecimento sociojurídico, do direito a uma vida digna, fora da ótica da patologia.

Em minha perspectiva de olhar, Lea T. fez exatamente o contrário.

O fato de ser quem é e ter falado no veículo que falou dota a sua fala pessoal de aspecto politico. Mas isso não pode servir de argumento suficiente para continuar a impedir um debate atrasado em mais de trinta anos - pelo menos.

A questão de o veículo de comunicação em tela não aceitar transmitir outros pontos de vista sobre o tema, é aspecto que compete aos movimentos trans e LGBT enfrentar.

Por que o movimento LGBT, o movimento trans, ninguém jamais ousou questionar a ordem simbólica que levou e leva milhares de transexuais pobres à morte pelo uso indevido de silicone industrial? Por que todos se limitaram e se limitam a reivindicar a cirurgia como a grande panacéia para todas e todos?

Quem supõe que “o problema não é usar silicone industrial, mas a transfobia”, não consegue ver que tanto a transfobia quanto o uso do silicone industrial e a cirurgia de transgenitalização, quando tratada como a única “solução”, como meio eficaz à “readequação”, são efeitos, sintomas de nosso sistema de gêneros.

Disponível em http://brasiliaempauta.com.br/artigo/ver/id/1473/nome/Lea_T_poe_o_dedo_nas_feridas_do_sistema_de_generos. Acesso em 28 out 2013.

Um comentário:

  1. por Nikole McCoy
    Desde os tempos das cavernas veio se moldando e fortalecendo a cultura do penis, que tem garantido a hegemonia masculina. A mulher sempre foi relegada a segundo plano, sendo considerada apenas a "escrava" que cuidava da caverna, do fogo e da prole enquanto o macho viril se juntava a outros machos viris da tribo e saiam em suas aventuras em busca de caça ou encrenca com outras tribos. O tempo passou, saimos das cavernas e construimos cabanas, as tribos cresceram e o superego foi finalmente implantado na mente do homem. Superego este, diga-se de passagem, machista. Religiões surgiram a partir deste superego e na sua maioria mantinham a mulher debaixo dos pés do homem, sendo sua mera propriedade ("Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu boi, nem o seu jumento...").
    O que me espanta é que estamos no terceiro milênio, em pleno século 21, a humanidade deveria ter evoluído não somente em termos tecnológicos, mas principalmente em termos espirituais. Não faz sentido acreditar que o tal deus da religião dominante no ocidente ache mesmo que a mulher deva ser um objeto do homem só porque ele tem pênis e ela não tem!!! Será o pênis algo assim tão importante de modo que torne quem o tem superior a quem não o tem?
    É aí que entra a questão da transgenitalização. Esta sociedade machista mal informada e mal intencionada não admite que uma mulher transexual tenha pênis e ainda assim seja considerada uma mulher no seio social, afinal de contas só homens têm pênis, o que llhes confere o grau de superioridade que gosam desde os idos tempos das cavernas até os dias atuais. Porque nós mulheres trans temos que tirar nosso pênis para que sejamos "reconhecidas" como mullheres nesta sociedade hipócrita? Qual o sexo verdadeiro de um ser humano, o que fica entre as orelhas ou o que fica entre as pernas? Eu como mulher trans garanto que é o sexo de cima, o cérebral. Eu tenho meu pênis e isso não me torna um homem cisgenero, pois meu cerebro é comprovadamente feminino e, portanto sou uma mulher, e ponto final! Gostem ou não gostem, entendam ou não entendam, concordem ou não concordem com isso, a opinião das pessoas não muda minha realidade e os rótulos que me põem não mudam meu conteúdo. Sou o que sou.
    Vejo muitas irmas serem iludidas de que só se tornarão mulheres de fato se trocarem seu penis de nascença por uma pseudo vagina artificial. Não creio ser bem assim. Quem está auto determinada a se submeter a cirurgia de trangenitalização, por consciência e convicção, que o faça! Mas se submeter às imposições de uma sociedade sexualmente analfabeta para ser aceita socialmente como a mulher que é de fato, independente de ter penis ou pseudo vagina aí eu já acho que é falta de informação ou de convicção da pobre irmã desorientada. Não tenho nada contra quem queira e se submeta a tal operação, da mesma forma não tenho nada contra meu penis, convivo bem com o "benefício" que me foi dado por Deus beneplacidamente e não será essa sociedade confusa, totalmente perdida no contexto da sexualidade que me vai impor nada!

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