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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Tom Gabel: o roqueiro que se assumiu transexual e se tornou Laura Jane Grace

IG São Paulo
16/07/2013

Conhecida por liderar a banda americana de punk rock Against Me!, a vocalista Laura Jane Grace, 32, fará uma turnê solo nos Estados Unidos a partir de agosto. Sem os colegas de banda, ela vai apresentar o show “Laura Jane Grace Sings The Transgender Dysphoria Blues”, que posteriormente se tornará um CD. Como o nome explicita, o espetáculo trata em suas músicas do fato da cantora ser uma transexual e também das dificuldades que Laura passou por nascer em um corpo de um homem, apesar de se ver como uma mulher.

Faz pouco mais de um ano que a cantora se assumiu como transexual. Antes disso, ela era conhecida como Tom Gabel , o vocalista da Against Me!, que existe desde 1997.  Numa entrevista à revista Rolling Stone, em maio de 2012, Laura saiu do armário e contou que tomou a decisão depois de encontrar uma antiga fã transexual da banda que também saiu do armário.

“Eu achei incrível e encorajador. De alguma forma, ela me mostrou como eu estava sendo covarde. Porque ela teve coragem de sair do armário como transexual. Pensei então porque diabos eu também não fazia a mesma coisa”, disse Laura à revista.

Na mesma entrevista, Laura revelou que o processo de se assumir foi doloroso. “O clichê diz que você é uma mulher presa no corpo de um homem, mas não é tão simples assim. Porque você tem um sentimento de desinteresse pelo seu próprio corpo e por si mesmo. E isso é uma m****, cara”, confidenciou.

Laura está fazendo um tratamento de readequação de gênero, tomando hormônios femininos, mas ainda não decidiu se fará uma cirurgia de mudança de sexo. A transexual também passou a usar maquiagem e roupas femininas.

O clichê diz que você é uma mulher presa no corpo de um homem, mas não é tão simples assim. Porque você tem um sentimento de desinteresse pelo seu próprio corpo e por si mesmo (Laura Jane Grace)

Em todo esse processo de mudança, a cantora teve apoio da mulher, a artista visual Heather Hannoura , que ficou sabendo que o marido era transexual dois meses antes do fato se tornar público. Num depoimento publicado pela revista Cosmopolitan em abril deste ano, Laura descreveu como foi essa conversa com Heather.

“’Podemos conversar?’, perguntei para minha esposa Heather, em 6 de fevereiro de 2012, três dias antes do aniversário dela. Talvez aquele nem fosse o melhor momento, mas eu não podia esperar mais. A pressão que se desenvolveu dentro de mim por 31 anos estava prestes a explodir. Com nossa filha Evelyn, de 3 anos de idade, dormindo no quarto ao lado, deitamos na nossa cama e olhando para os belos olhos castanhos de minha esposa, eu confessei: ‘Eu sou um transexual’, lembrou Laura, descrevendo a conversa.

Para a surpresa de Laura, que ainda vivia como Tom, Heather não reagiu mal à informação da transexualidade do marido, ficando até aliviada, já que acreditava que o motivo da conversa séria uma possível separação.

Na mesma edição da Cosmopolitan, Heather explicou sua reação diante da revelação. “Eu sei que outros casais se separariam por causa disso, mas eu nunca considerei deixá-la. O meu medo era que ela preferisse casar com um homem já que se sentia como mulher. Mas ela me disse: ‘Pense em mim como uma lésbica’. Depois disso, muitas coisas começaram a fazer sentido”, observou a esposa de Laura.

Laura reafirma seu amor por Heather, dizendo: “Eu acredito que minha esposa é minha alma gêmea e que estamos destinados a ficar juntos... Sempre amei o sexo com minha esposa e quero que continue assim”.

A filha do casal ainda está tentando entender essa mudança. Para ajudá-la a compreender, Laura tem mostrado capas de discos de artistas que questionaram as definições tradicionais de gênero, aparecendo publicamente com visuais andróginos, como Boy George, David Bowie eFreddie Mercury . Apesar de ainda chamar a cantora de pai, Evelyn já ajudou Laura a se maquiar.

Com dois anos a mais que Evelyn, aos 5 anos, a atual líder do Against Me! se reconheceu como mulher  pela primeira vez ao ver uma apresentação da popstar Madonna na televisão, pensando na ocasião: “Eu sou assim”.


Disponível em http://igay.ig.com.br/2013-07-16/conheca-a-historia-de-tom-gabel-o-roqueiro-que-se-tornou-a-laura-jane-grace.html. Acesso em 14 out 2013.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Privacidade e corpo: convergências possíveis

Carlos Nelson Konder
Pensar, Fortaleza, v. 18, n. 2, p. 352-398, mai./ago. 2013

Resumo: O artigo propõe uma leitura historicamente contextualizada das convergências entre o direito à privacidade e a proteção jurídica do corpo. Parte da concepção moderna do “direito a ser deixado só” e da indisponibilidade do corpo aborda os desafios impostos pelas pressões do mercado e demandas por segurança para chegar à privacidade como autodeterminação informativa e ao corpo como informação, ilustrando com as situações da redesignação sexual, da proteção dos dados genéticos e do direito de não saber.



sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Universo infantil moldado

Diana Levcovitz; Adriana Maimone Aguillar

A o refletir sobre o corpo da criança, poderíamos levar em consideração inúmeros aspectos. Existe, atualmente, um número expressivo de pesquisas realizadas sobre a obesidade infantil, especialmente em crianças de classe média, associando o distúrbio a hábitos sedentários, tais como as práticas de jogar video-games, assistir televisão, navegar na Internet, à falta de atividades físicas nas escolas, como a expressão corporal, os esportes, a dança ou o teatro. Alia-se a isso a alimentação inadequada, mesmo em crianças das classes populares, ou a falta de um padrão alimentar. Outro aspecto seria a questão da violência corporal que inclui maus tratos por parte dos pais ou responsáveis, familiares, adultos e até adolescentes. Poderíamos falar da questão das brincadeiras de rua, cada vez mais escassas, e que, em outros tempos, favoreciam um corpo em movimento. Hoje, quando se fala em questão das brincadeiras de rua, cada vez mais escassas, e que, em outros tempos, favoreciam um corpo em movimento. Hoje, quando se fala em criança de rua, queremos fazer referência a meninos abandonados e não a crianças brincando nas ruas; são os valores que se invertem.

Para este ensaio nos restringiremos à pedagogização do corpo infantil

Ainda temos as questões de sexualidade, de gênero, de raça e de etnia. Como são vividos e pensados estes aspectos com relação ao corpo da criança?

Falar do corpo da criança implica, necessariamente, falar de vários corpos e, até mesmo, de várias infâncias. Ou, talvez, devamos especificar a que corpo e a que infância estamos nos referindo. Nos séculos XVI e XVII, tanto a noção de infância como a noção de corpo, eram totalmente diferentes daquela que possuímos atualmente. Algumas pessoas poderão se assustar ao ler as páginas do diário de Heroard, médico de Henrique IV, no qual anotava alguns fatos da vida do jovem Luís XIII. Philippe Ariès descreve algumas passagens deste diário no livro História Social da Criança e da Família, onde podemos perceber claramente as distinções de comportamento. São descritas situações nas quais brincadeiras sexuais eram realizadas sem a menor vergonha ou pudor: “Luís XIII tem um ano: ‘Muito alegre’, anota Heroard, ‘ele manda que todos lhe beijem o pênis.’ Ele tem certeza de que todos se divertem com isso. Todos se divertem também com sua brincadeira diante de duas visitas, o senhor de Bonnières e sua filha: ‘Ele riu muito para (o visitante), levantou- lhe a roupa e mostrou-lhe o pênis, mas, sobretudo à sua filha; então segurando o pênis e rindo com seu risinho, sacudiu o corpo todo.’As pessoas achavam tanta graça que a criança não se cansava de repetir um gesto que lhe valia tanto sucesso.” (ARIÈS, 1981, p.126)

Consideramos interessante ressaltar essas descrições apenas como ilustração para a compreensão da maneira como a concepção de corpo assim como a de infância se transforma no decorrer dos tempos.

Gênero e a teoria Queer
Queer é uma palavra inglesa e significa estranho, excêntrico. Mas também é a forma pejorativa de se referir a homens e mulheres que se interessam por pessoas do mesmo sexo. A filósofa norte-americana Judith Butler manteve o termo para que, por meio do deboche, pudesse reinvidicar para os estudos, e para a militância de uma forma geral, um caráter de contestação. O termo, dessa forma, passou a designar tudo (pessoa ou coisa) que assume posição contra qualquer tipo de normatização. A teoria queer nasceu de estudos feministas nos anos 90, sob influência do pensamento de Foucault, especialmente no diz respeito à forma como o poder se relaciona com a identidade. Basta lembrar que nas últimas décadas do século XX, as feministas foram as primeiras a questionar que uma identidade universal (no caso, a branca e masculina) devesse servir como fundamento único para o pensamento e para a ação política. Alardearam a necessidade de levar em conta a diferença, lembrando que raça, etnia, classe, gênero e sexualidade são categorias que interagem e produzem um amplo espectro de identidades que são mutáveis e resistentes a definições rígidas. Dessa maneira, ao compreenderem a noção de categorias transhistóricas, tais como: mulher, homem, homossexual, etc, muitos acadêmicos assumidamente feministas e gays desenvolveram trabalhos de teoria queer como uma nova forma de pensar as políticas de gênero e de sexualidade. Convém ser ressaltado que, enquanto a teoria produzida desde estudos gays ou lésbicos examina diferentes identidades, a teoria queer examina as diferenças para minar a própria noção de identidade.

“Correr, para nós, é como andar a cavalo, galopando, competindo com o vento. Não se sabe nada, não se pensa, não se lembra de nada, nada se vê, apenas sente-se a vida, uma vida plena.” (Janusz Korczak, Quando eu voltar a ser criança, p.29)

MICHEL FOUCAULT, em História da Sexualidade I, A Vontade de Saber, opõe dois conceitos ao estudar os discursos produzidos sobre o sexo. Um deles era a scientia sexualis ou, dito resumidamente, um conjunto de saberes sobre o sexo como discurso médico, cientificista, baseado na biologia evolucionista da reprodução. Outro conceito , a ars erotica, era um conjunto de saberes nascidos das práticas culturais, algumas milenares, da Grécia e da Roma clássicas, da Índia e da China, que buscavam saber sobre o sexo para ampliá-lo. No ocidente vingou o primeiro tipo de saber, tendo na confissão religiosa sua principal fonte de discursos. Posteriormente, a confissão religiosa daria lugar à Pedagogia e à Medicina. Quando o filósofo elabora o conceito de dispositivo da sexualidade, o faz levando em conta estratégias globais de dominação. Para este ensaio, entretanto, nos restringiremos a uma delas: a pedagogização do corpo da criança. Não foi simplesmente proibido falar de sexo, mas, por meio da Pedagogia, produziram-se formas exatas e corretas de se falar sobre o sexo, ou seja, uma legitimação dos discursos sobre o assunto, acompanhada de uma forma correta de se utilizar os corpos, mediante discursos específicos sobre o corpo.

A chamada “sociedade disciplinar” (termo cunhado por Michel Foucault que se refere a cada um em uma instituição cujo objetivo é o controle e a produção dos corpos), com seu modelo de repressão, impedia que se falasse do corpo. Atualmente, na “sociedade de controle” (descrita por Gilles Deleuze no livro Conversações, o qual a sociedade abole fronteiras, mas não o controle) , ainda que a repressão não tenha sucumbido de todo, vivemos experiências contrárias a ela. Nas palavras de Lins e de Gadelha (2002, pp.171-172) “(...) superexcitam-se os corpos (...) configurando um corpo ágil, animado, hiperacelerado. (...) Segundo Nietzsche, é sempre sobre a superfície dos corpos que incide qualquer ‘educação’.”

Quando falamos de infância e de corpo caímos certamente em questões acerca da educação, seja aquela oferecida pela escola, seja a oferecida pelos pais ou seus responsáveis.

Família e escola foram instituições responsáveis pelo ensino de cuidados individuais com o corpo

PARA COMPREENDERMOS aspectos relativos aos corpos das crianças devemos levar em conta a maneira como nele estão inscritos alguns imperativos históricos e culturais.

A partir disso, é possível afirmar que a criança, antes mesmo de nascer, já está inserida num complexo de sentidos que lhe é dado pelas instituições que a aguardam. Querendo ou não, ela carrega em seu corpo uma espécie de narrativa que seus antepassados e mesmo seus contemporâneos veiculam. E isso vale tanto para a criança que habita um grande centro urbano quanto para aquela que vive em uma pequena aldeia e pertence a um povo indígena. Entretanto, ela é um ser capaz de experienciar a vida de maneira intensa, diferente do adulto. A criança tem inventividade para transformar o que vê e o que descobre e, junto com seus pares, produz cultura. Efetuar esse entendimento demanda uma compreensão da história, da geografia e da cultura que atuam na direção da construção de um corpo que possui características próprias. Para isso, algumas perguntas se impõem: como é vista a sexualidade na infância? E quanto à questão de gênero, existe alguma diferença no trato dos meninos e com as meninas? As crianças negras, ou de diferentes etnias, como são tratadas?

“Lembro-me de uma surra que um colega levou. Foi o professor de caligrafia que o castigou. (...) Tive muito medo então. Parecia-me, que, assim que acabassem com ele chegaria a minha vez. E senti muita vergonha, pois o garoto foi castigado nu.” (Janusz Korczak, Quando eu voltar a ser criança, 39)

Família e escola têm-se constituído historicamente como instituições de referência para se entender e informar o que vem a ser a criança. Podese dizer que foram as instituições responsáveis pelo engendramento da individualização, ensinando e exigindo ao longo do tempo, o cuidado sobre o corpo em seus mínimos detalhes. Foucault, em entrevista à revista Quel Corps? em junho de 1975, afirmou que tal movimento de individualização propiciou a possibilidade de se perceber no corpo beleza, capacidade e habilidades. E isso só foi possível dentro de um processo de educação meticuloso e sistemático, levado adiante coletivamente. Fez-se necessário um investimento no corpo, uma produção de padrões de disciplina e de destreza, de higiene, de “boa” postura, e mesmo de etiqueta, de retórica e de apreciação do belo. Dessa maneira, as crianças, à semelhança de soldados, eram investidas de um modelo de corpo poderoso e saudável, adepto da ginástica, da nutrição balanceada, das horas de sono restauradoras etc. Paralelamente, refinaram-se os saberes e diversas disciplinas acreditaram poder explicar os funcionamentos e, os alcances e a formação de um corpo modelar. A Medicina, com a Fisiologia e a Psiquiatria, seria um exemplo disso. “(...) Mas, a partir do momento em que o poder produziu este efeito, como conseqüência direta de suas conquistas, emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor. E, assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por que ele é atacado... O poder penetrou no corpo, encontra−se exposto no próprio corpo... (...)” (Foucault, revista Quel Corps?, junho de 1975)

Não é possível afirmar que a disciplina, na escola, tenha sido banida de todo

NESSE SENTIDO, o corpo da criança, como o do adulto, passa a ser positivado. Ainda que, na casa ou na escola, seja muitas vezes desencorajado a se mover e a falar, esse mesmo corpo recebe paparicação, aprende a sociabilidade da negociação e inventa esconderijos para suas pequenas descompressões. Não se trata, enfim, de um corpo genérico, mas de um corpo produzido socialmente, culturalmente.

Nas relações entre os corpos das crianças e dos adultos estão presentes relações de poder. Melhor dizendo, em qualquer tipo de relação entre pessoas (criança-criança; adultoadulto e criança-adulto) o poder está presente. E isso ocorre em nome de uma disciplina, de uma docilização. Isso pode ser percebido facilmente no poder da mãe sobre a constituição do paladar na criança, ou nas horas de sono “criadas” para esta.

NA SOCIEDADE disciplinar característica do século XVIII, a cada um era destinado um lugar: a caserna, a fábrica, a escola, o manicômio, o prostíbulo. Dessa maneira, os corpos eram vigiados constantemente e as ações humanas executadas de acordo com ordens superiores. A escola surgiu, dessa maneira, como instituição disciplinar por excelência. Nos dias atuais, entretanto, não é possível afirmar que a disciplina, na escola, tenha sido banida de todo. Exemplo disso são estudos que constataram que, por ser o momento do recreio o da movimentação livre, os professores o suprimem como forma de punição aos desobedientes. Ademais, ao analisarem mudanças ocorridas na escola, alguns autores chegam a afirmar que a indisciplina e a violência nesse espaço podem ser vistas como efeito de uma transformação na sociedade. O que se tem, na verdade, são resquícios da “sociedade disciplinar” sobrevivendo a outro tipo de sociedade, ou seja, a “sociedade de controle”. Nesta, os espaços de trabalho e de estudo, por exemplo, não aparecem tão bem definidos, e não existe mais uma vigilância constante sobre as pessoas. O controle é exercido “a céu aberto”, de uma maneira tão branda que dificilmente é reconhecido como tal. Outros exemplos da “sociedade de controle” são os telefones celulares, a Internet, o GPS, a senha digital, as câmeras de segurança, enfim, facilidades que o homem contemporâneo raramente questiona como invasivas, por conta do proveito que delas tira. O controle, dessa maneira, parece perder sua origem institucional para se exercer no nível pessoal.

O controle é exercido “a céu aberto”, de uma maneira tão branda que dificilmente é reconhecido como tal

Uma oportunidade que as crianças inventam para relaxar do controle disciplinar é inserir a sexualidade nas brincadeiras. Esse é um assunto que provoca incômodo em casa e na escola e torna-se visível nas ações “inocentes” impregnadas de excitabilidade e agressividade das crianças. Sendo elemento tão constante na vida de todos, a sexualidade manifesta- se na criança também como vontade de saber, de descobrir, de experimentar poder.

De uma maneira mais extensa, a sexualidade indica também a maneira como o indivíduo sente, percebe, e lida com a genitalidade. Esse conjunto de experiências carrega significados que são partilhados em diferentes culturas e em determinados momentos de suas histórias. Apenas para ilustrar, o que no Brasil contemporâneo é considerado incesto não o é, por exemplo, numa tribo da Polinésia francesa no século XVII. Ou mesmo a masturbação que, em tempos bíblicos, recebeu a conotação de imoralidade pelo fato de, nas práticas masculinas, a ejaculação resultar desperdício de esperma essencial para a reprodução.

“Vocês pensam, quem sabe, que nós também batemos um no outro. Mas nossas mãos são pequenas e temos pouca força. E mesmo quando estamos com uma bruta raiva nunca batemos para machucar. Vocês não sabem como são as nossas brigas.”(Janusz Korczak, Quando eu voltar a ser criança, p. 106)

Ao afirmar que há diferentes formas de se viver a sexualidade e de se organizar afetivamente, Miskolci (2005) lembra que diversos tipos de arranjos familiares se constituem a todo tempo, no mundo todo. Basta lembrar que a família chamada de ”tradicional”, isto é, composta de pai, mãe e filhos, tem dividido a cena social com famílias em que só um adulto cuida da criança, com famílias cujo casal parental é homoerótico, e outras mais. Em tempos de reprodução assexuada, vale lembrar que a heterossexualidade, antes definição de padrão de normalidade em matéria de escolha ou orientação sexual, é apenas mais uma – embora majoritária – no universo de possibilidades de vivência afetiva e erótica. Em outras palavras, ser heterossexual não é sinônimo de ser normal, pois quem tem outra orientação sexual não é imoral, indecente ou anormal.

Autores defendem que novas questões de gênero devem considerar a inversão do pólo referencial

“DANÇA É COISA DE MENINA”; “Azul pros meninos, rosa pras meninas”; “Chorar é pra mariquinha”. Quando uma criança, espontaneamente, faz afirmações como essas chegamos a achar natural que ela separe o mundo em duas categorias e que, com base nelas, ordene seu saber e seu querer. Porém, não se falam coisas espontaneamente, mas a partir de idéias, crenças, costumes que nos acompanham desde o nascimento. E, no mundo da linguagem, dificilmente haverá algo natural. Sabe-se que a natureza não equipou os corpos com idéias, crenças e falas; elas foram sendo engendradas nas pessoas de muitas formas, desde as relações de troca até o simples ensinamento. Afirmações como essas e tantas outras que separam meninas e meninos foram produzidas muito antes que a criança sequer se posicionasse sobre elas.

ATITUDES DO ADULTO muitas vezes conduzem a criança a formar para si uma noção de gênero, de sexo e de identidade num sentido mais amplo. Isso pode ser percebido não apenas na casa ou na rua, mas, também, nos chamados equipamentos coletivos de educação. Alguns autores brasileiros, como Louro (2003) e Miskolci (2005), defendem que novas questões surgidas a partir dos estudos sobre gênero devem levar em conta o risco de se inverter o pólo referencial, substituindo o homem - branco, ocidental, heterossexual, de classe média - da cena hegemônica pela mulher perpetuando, assim, uma polarização que é típica do binarismo conceitual. No campo da pesquisa histórica, Goellner (2003) mostrou ser possível traçar o percurso das práticas de atenção ao corpo, com a saúde e a higiene representando o “cuidado de si”, tanto quanto as modificações sofridas ou realizadas ao longo dos séculos. Autores estrangeiros, especialmente Butler (2005) acrescenta a essas preocupações a teoria queer afirmando que, ao longo do tempo, foi construído também um discurso que legitimou as diferenças de gênero. O resultado disso, no longo prazo, foi a instituição do heterossexualismo compulsório. Em outras palavras, para que a função reprodutiva tida como natural fosse garantida, alinharam-se, obrigatoriamente, o sexo, o gênero e o desejo (veja texto O que é a teoria queer?).

“As crianças são rápidas porque sabem deslizar entre.” (Diálogos, Deleuze; Parnet, 1998, p. 42)

Etnia, do conceito à reflexão
O conceito de etnia, Munanga lhe atribui uma conotação política, dada sua característica dinâmica. Segundo ele, etnia descreve um conjunto de seres humanos que, em um determinado tempo, falam uma mesma língua, professam uma religião ou acreditam em um mesmo ancestral e partilham uma visão de mundo. Formam, assim, uma cultura que ocupa um determinado território. Talvez se possa acrescentar que o conceito também abarca culturas que estão em busca de um território, a exemplo de muitos povos indígenas do Brasil, dos judeus e palestinos na Faixa de Gaza, dos bascos na França e na Espanha. “Ao mesmo tempo em que nossa miscigenação e pluralidade étnica se transformam em magníficas metáforas e alegorias literárias, negros, índios e mestiços vivem a mais brutal discriminação em todos os lugares em que vivem, seja no campo ou nos centros urbanos. Estranho jogo esse em que os diferentes são, a um só tempo, objeto de exaltação e de exclusão.” (Gonçalves; Gonçalves e Silva, O Jogo das Diferenças, p.14). Até nos livros escolares, particularmente nos do ensino fundamental, o tema é revestido de um romantismo que coloca os índios em um passado idílico, aprisionando-os em um imaginário de beleza, ingenuidade e falta de futuro. Nas escolas, políticas de afirmação de etnias ou inexistem ou são apagadas. É urgente, insistem esses estudiosos, que se estude a conduta da sociedade em relação às diversas etnias, verificando que apoio recebem quando resistem ao processo de globalização que, em larga medida, se coloca como eurocêntrico e hegemônico.

Ao contrário do gênero, para muitos, a diferença entre raça e etnia não é tão explícita. Ao orientar a discussão sobre o tema, Munanga (2003) diz que, enquanto o conceito de raça se refere as características físicas - formatos de rosto, de nariz, tipos de cabelo, diferentes graus de concentração de melanina - o conceito de etnia procura localizar os grupos humanos desde uma perspectiva histórica, simbólica e psicológica.

Componentes educacionais devem ser projetados e executados levando em conta as diferentes identidades

A PESQUISA NACIONAL por Amostra Domiciliar (PNAD), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1999, concluiu que a população brasileira negra era de 45,5%. Apesar de tal constatação, o que se vê, cotidianamente, é a negação da contribuição da raça negra para a formação cultural do País. Uma explicação para esse apagamento é dada pelo mito da democracia racial, segundo o qual a sociedade brasileira vive em harmonia, respeitando mutuamente os direitos das diferentes raças. Na realidade, existe um padrão sobre o qual se busca adequar a diferença racial, que por vezes abertamente, conduz o ideal de beleza, de cultura, de bom gosto, de verdade, ao modelo eurocêntrico, isto é, branco – preferencialmente do hemisfério norte – cristão e masculino.

“Os adultos ficam espantados quando nos vêem brigando; e, no entanto, somos solidários entre nós. Pois é, existem dois grandes times: os adultos e as crianças.” (Janusz Korczak, Quando eu voltar a ser criança, p. 212)

NO QUE DIZ RESPEITO à criança, desde uma perspectiva de coletivo, a escola é um espaço que deveria acolher e promover diferenças. Abramowicz e Silvério (2006) alertam que, para isso acontecer na prática, ela deve se orientar por uma equalização na qualidade do atendimento que oferece. Os serviços, as instalações e os equipamentos, o currículo, a formação de pessoal, e tantos outros componentes educacionais devem ser projetados e executados levando em conta as diferentes identidades. Não se trata de premiar um segmento da sociedade em detrimento de outro, mas privilegiar atitudes voltadas para a valorização das diferenças étnico-raciais (veja quadro Etnia, do conceito à reflexão).

A conclusão que chegamos é que cada criança traz uma singularidade, uma história, uma vida, experiências particulares. Traz também sentidos dados pela cultura e orientações passíveis de negociação no plano das relações cotidianas. Perceber cada singularidade, revelar as possíveis expressões de racismo e preconceito e trabalhar com essas questões presentes nos espaços coletivos, este é o desafio colocado ao adulto, na casa, na escola, na rua, na mídia. Cada uma destas instituições pode se atribuir a tarefa de buscar novas possibilidades de propiciar à criança ou a apoiar em relacionamentos com os outros, com o conhecimento, favorecendo assim a criação de si e do outro.



Disponível em http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/edicoes/17/artigo92056-1.asp. Acesso em 14 out 2013.

domingo, 4 de agosto de 2013

Troca de olhares com homens aumenta temperatura das mulheres, diz estudo

BBC BRASIL
5 de junho, 2012

Pesquisadores da Universidade de St. Andrews descobriram que a mera interação visual entre duas pessoas do sexo oposto pode causar um considerável aumento da temperatura do rosto das mulheres.

A equipe utilizou técnicas de imagens termais para detector as alterações perceptíveis nas mulheres heterossexuais durante encontros com outras pessoas.

Os cientistas ressaltaram que outros tipos de pesquisa podem se beneficiar da mesma técnica no futuro, entre elas a medição de níveis de estresse e detectores de mentiras.

Segurança nacional

Uma das principais autoras do estudo, Amanda Hahn, disse que os pesquisadores mensuraram a temperatura da pele na mão, braço, rosto e seios das mulheres que interagiram com homens.

Os resultados revelaram um aumento dramático no rosto, sendo que em alguns casos a temperatura chegou a se elevar em um grau.

"Esta mudança termal ocorreu em resposta a uma interação social simples, sem qualquer mudança de experiência emocional ou de excitação. De fato nossos participantes não relataram ter sentido desconforto ou constrangimento durante a interação", disse Hahn.

Em comparação, resultados das interações das participantes com outras mulheres não mostraram alterações.

O estudo deve ser publicado até o fim do mês no periódico Biology Letters.

David Perrett, outro cientista envolvido no estudo, diz que as técnicas de imagem termal poderão ser usadas até para defender interesses de um país em questão de segurança nacional.

"Nós estamos apenas começando a entender os usos potenciais das imagens por temperatura na medicina e elas podem ser muito úteis em assuntos de segurança nacional, área na qual as mudanças de temperatura da pele podem ser usadas como parte de testes de detecção de mentiras".

O próximo passo é determinar se essas mudanças no corpo das mulheres são detectadas por outras pessoas e se podem afetar interações sociais.


Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/06/120605_interacao_mulheres_estudo_jp.shtml. Acesso em 03 ago 2013.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Travestis e educação formal: diferença insuportável para o currículo

Aline Ferraz da Silva
Universidade Federal de Pelotas–RS
Instituto Federal do Rio Grande do Sul
III Seminário Nacional Gênero e Práticas Culturais

Qual a primeira imagem, cena, conceito que nos remete a palavra “travesti”? Homem vestido de mulher? O contrário talvez? Prostituição? Criminalidade? Sexo? Transgressão? Imoralidade? (in)Diferença? Talvez, todas as alternativas ou nenhuma? Durante pesquisa realizada em nível de mestrado (Silva, 2009) abordei as relações que três estudantes gays mantinham com sua comunidade escolar e os efeitos que suas presenças geravam no currículo, surgiram nas entrevistas diversos temas e questões que em razão do foco do estudo acabaram sendo secundarizadas no trabalho final. Uma dessas questões diz respeito ao travestimento, já que eventualmente as três estudantes frenquentavam a escola montadas. Em suas falas, as travestis apareciam como um gay que realiza transformações corporais para se parecer com uma mulher, e com uma conexão muito forte com prostituição e marginalidade. Figuras que sofrem preconceito tanto no meio hetero quanto no homossexual.

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segunda-feira, 10 de junho de 2013

Transexual pode se descobrir já na primeira infância, dizem especialistas

Luna D'Alama
03/03/2013

A identificação com o sexo oposto e o eventual desejo de uma pessoa em assumir uma nova identidade de gênero começa geralmente na primeira infância, entre os 4 e 6 anos de idade, segundo o psicólogo clínico e psicanalista Rafael Cossi, autor do livro "Corpo em obra", lançado em 2011 após análise de seis biografias de transexuais.

Na última semana, o G1 publicou a história do menino americano Coy Mathis, de 6 anos, que se identifica como menina e é aceito pelos pais, mas tem tido problemas na escola ao querer usar o banheiro feminino. Segundo a família, Coy age assim e brinca com bonecas desde que tinha 1 ano e meio.

"Nessa idade, ainda não dá para falar se a criança será um transexual no futuro. Isso porque não se sabe até que ponto ela só está brincando de se comportar como alguém do outro sexo ou se esse já é um indício de transexualidade", diz.

Transexual é a pessoa que tem um transtorno mental e de comportamento sobre sua identidade de gênero, ou seja, nasce biologicamente com determinado sexo, mas se vê pertencente a outro e cogita fazer tratamentos hormonais e cirurgia para mudar o corpo físico. Ao contrário do que já acreditaram psicanalistas no passado, esse não é um caso de psicose, com alucinações e delírios, defende Cossi.

Brincadeira de criança – ou não

De acordo com o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtornos de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) em São Paulo, casos como esse sempre existiram, e é importante diferenciar uma simples brincadeira de um comportamento constante.

Nessa idade (até os 6 anos), ainda não dá para falar se a criança será um transexual no futuro"
Rafael Cossi,
psicólogo clínico e psicanalista

"É muito comum crianças inverterem os papéis, e quando é algo pontual não há maiores problemas. Mas, se isso se tornar um hábito frequente, diário, o menino querer mudar de nome, usar presilha e brinco, é indicado que os pais e o filho passem por uma avaliação profissional antes de qualquer coisa, para ver se essa é uma questão familiar que a criança está tentando resolver dessa forma ou se já é um transtorno de gênero", afirma.

O médico diz que cada caso precisa de um acompanhamento diferente e individualizado. Se houver realmente um transtorno, ser violento com a criança e censurá-la pode piorar muito a situação.

"A escola também não deve reprimir, mas chamar os pais, explicar o que está acontecendo e aproveitar essa oportunidade para educar também com as diferenças. E não é porque uma criança vê outra fazendo algo que vai querer imitá-la, elas não são macaquinhos", destaca Saadeh.

Na opinião do psicólogo Rafael Cossi, os pais têm que acompanhar o que está acontecendo e não adianta julgar, proibir, punir ou bater.

"Se houvesse uma mentalidade mais aberta e liberal dos pais, a escola aceitaria melhor. O medo do colégio é de como isso repercute para as famílias e a possibilidade de perder alunos de uma hora para a outra", diz.

Segundo Cossi, o preconceito da escola não é apenas contra transexuais e homossexuais, mas contra deficientes, pessoas com síndromes e tudo o que foge ao que é caracterizado "normal" – desde uma falta de uniforme até um cadarço ou cabelo colorido.

"Já os pais costumam dizer que ficam preocupados não tanto com o fato de o filho ser diferente, mas como será a vida dele em sociedade, se os colegas vão tirar sarro, pois existe muita discriminação", afirma.

Cossi cita o filme francês "Tomboy", de 2011, que conta a história da menina Laure, de 10 anos, que muda de cidade e se apresenta aos novos amigos como Mikhael. Até então, o fato de ela se vestir e se comportar como um menino não parecia incomodar a mãe, mas, quando ela fica sabendo que a criança "mudou" de nome, rejeita a situação.

"O filme é muito bom, é um relato, e não faz questão de dar nenhuma pista sobre qual vai ser o futuro da menina. Isso fica em aberto", aponta.

A escola não deve reprimir, mas chamar os pais, explicar o que está acontecendo e aproveitar essa oportunidade para educar também com as diferenças"
Alexandre Saadeh,
psiquiatra do HC-SP

Corpo x gênero

O psiquiatra do HC Alexandre Saadeh explica que há um componente biológico muito importante na questão da identidade de gênero.

"Hoje em dia, sabe-se que existe um cérebro feminino e um masculino, determinado no útero da mãe por hormônios masculinos circulantes. E isso interfere no desenvolvimento cerebral para uma linhagem feminina ou masculina. A cultura e o ambiente também têm importância, mas a determinação é biológica", acredita o médico.

Segundo o psicólogo Rafael Cossi, a ideia de dimorfismo corporal entre homens e mulheres, ou seja, indivíduos da mesma espécie com características físicas (não sexuais) claramente diferentes, só ganhou força com os avanços da biologia no século 19.

"Até então, prevalecia a ideia de isomorfismo, em que o corpo feminino era visto apenas como uma versão do masculino. A vagina era considerada um pênis invertido e o calor era o diferencial dos corpos, pois a temperatura do homem era mais alta que a da mulher", afirma.

O psicólogo cita o livro "Inventando o Sexo – Corpo e gênero dos gregos a Freud", em que o historiador e sexólogo americano Thomas Laqueur estuda como o corpo foi encarado em vários momentos históricos. Cossi também destaca que desejo sexual, gênero e identidade sexual são conceitos bem distintos.

"Uma coisa é o desejo, a orientação, a prática sexual. Outra é o gênero, como a pessoa se vê, seus gostos e comportamentos – algo cultural, social, que varia com o tempo. Essa é a ideia do que um homem ou uma mulher faz, como pensa, como se veste, quais traços o definem. Já a identidade sexual envolve uma noção de inconsciente, inclui o fator psíquico, de como o sexo se constrói na mente e reconhece o que é homem e o que é mulher", esclarece.

É por isso que, segundo o psicólogo, existem transexuais lésbicas ou gays, ou seja, pessoas que se transformam fisicamente com cirurgia e hormônios, mas não necessariamente se atraem pelo sexo oposto. "Nossa mentalidade ainda é muito heterossexual", ressalta.

'Sofria muito por ser diferente'

A transexual Brunna Valin, de 38 anos, conta que desde os 7 anos já sabia muito bem que não gostava de meninas. Aos 11 anos, vieram as brigas no colégio, as surras dos meninos, até que ela deixou a escola na 7ª série do ensino fundamental.

"Eu sofria muito por ser diferente. Com 12 anos, já me apresentava como Brunna e me vestia de menina, com saia, sapato de salto, batom, brinco. Queria ser igual à Roberta Close, era um espelho", lembra.

Em casa, dentro de uma família religiosa, em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, a transexual também encontrou rejeição. Após apanhar algumas vezes, deixou os pais aos 14 anos e foi morar com a avó, depois com uma prima, até ficar sozinha.

"Tenho mais sete irmãos – dois homens e cinco mulheres. Só um irmão me aceita muito bem. No começo, para eles eu era gay, não entendiam essa questão de gênero. Meu pai morreu há três anos, ainda não aprovando", revela.

Brunna mora há dois anos na capital paulista, onde trabalha como orientadora sócio-educativa no Centro de Referência da Diversidade da ONG Grupo pela Vida, e visita a família apenas uma ou duas vezes por ano.

"No fim de 2012, fui lá passar o Ano Novo e contei que vou fazer a mudança de sexo. Percebi a rejeição no olhar, na fala deles. Ficaram perguntando se já consegui trocar de nome, se já está no RG. Enfrento isso todo dia, pois a sociedade nos vê como diferentes", diz.

Com 12 anos, já me apresentava como Brunna e me vestia de menina, com saia, sapato de salto, batom, brinco. Queria ser igual à Roberta Close, era um espelho"
Brunna Valin,
transexual

A transexual, que foi profissional do sexo dos 14 aos 36 anos, voltou a estudar e agora está prestes a concluir o ensino fundamental. Este ano, pretende começar o médio e, depois, quer fazer faculdade de psicologia. No currículo, ela também acumula cursos de formação de costureira, cabeleireira e cozinheira.

Além disso, Brunna tem passado por um acompanhamento com vários profissionais no Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, da Secretaria de Estado da Saúde. A meta é se submeter à cirurgia de mudança de sexo em 2014 – da qual não tem medo de se arrepender.

"Tomo hormônio desde os 15 anos, e hoje aplico uma injeção mensal à base de progesterona. Em maio do ano passado, coloquei silicone nos seios e agora estou tirando os pelos do corpo com laser. Já fiz no rosto e vou para os braços. Em agosto, também quero pôr prótese nos glúteos, porque as características femininas estão no corpo inteiro, não é só fazer uma vagina. Hoje nem gosto de olhar muito, aquilo não é meu", diz.

Dois anos de preparação

Antes de toda cirurgia para mudança de sexo, o Sistema Único de Saúde (SUS) exige que a pessoa, com mais de 21 anos, faça pelo menos dois anos de acompanhamento psicológico ou psiquiátrico, no qual seja diagnosticada com distúrbio de identidade de gênero.

No ambulatório de São Paulo, criado em 2009 e considerado o primeiro do tipo no país a atender exclusivamente travestis e transexuais, há atualmente 1.500 pessoas cadastradas. Desse total, 65% (975) se consideram transexuais – 915 são homens biologicamente que se sentem como mulheres e 60 são o contrário. Os outros 35% são travestis que desejam tomar hormônios e mudar a aparência, mas não pretendem fazer a operação.

"Esses dois anos de acompanhamento que oferecemos com psicoterapeuta, psiquiatra e endocrinologista servem para a pessoa ter certeza sobre a cirurgia"
Angela Peres,
diretora técnica do ambulatório
para travestis e transexuais de SP

"Esses dois anos de acompanhamento que oferecemos com psicoterapeuta, psiquiatra e endocrinologista servem para a pessoa ter certeza sobre a cirurgia. Aí fazemos o encaminhamento ao HC. Nesse período, alguns desistem. Outros vão para a Tailândia, mudam de sexo e se arrependem, porque lá não existe todo esse protocolo daqui", diz a diretora técnica substituta do ambulatório, Angela Peres.

Segundo ela, o local conta com uma equipe de 30 profissionais – entre clínicos gerais, endocrinologista, psiquiatra, psicólogos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, urologista, ginecologista, proctologista, assistentes sociais e recepcionistas – e atende brasileiros de vários estados, como Minas Gerais, Bahia e Acre.

Cirurgia, felicidade ou arrependimento

Em 14 anos, o HC de São Paulo já operou 50 pacientes para mudança de sexo, a maioria homem que se sente mulher, segundo o chefe de urologia pediátrica e disfunção sexual do hospital, Francisco Dénes.

"Nunca vi um caso de alguém que tenha se arrependido. Isso ocorre quando o paciente é mal orientado", ressalta.

Para trocar do sexo masculino para o feminino, em geral são feitos tratamento hormonal e uma única cirurgia de 4 horas. Já o inverso exige duas ou mais operações de cerca de 3 horas. Apesar de o primeiro caso, em que há a desconstrução do pênis e dos testículos para a formação de uma vagina, parecer mais tranquilo, o urologista diz que pode exigir retoques, ter mais problemas anatômicos, risco de infecção, abertura dos pontos ou necrose (morte do tecido).

"Eu achava que a minha felicidade era embasada na cirurgia. Fiquei mais à vontade, mas um pênis e uma vagina não trazem felicidade para ninguém. Nunca vou ser 100% mulher. Calço 42, minha mão é enorme, meu ombro é largo"
Lea T,
transexual

O pós-operatório envolve o uso de curativos, sonda e pelo menos sete a dez dias de repouso no hospital. Se não houver problema, a pessoa pode voltar logo às atividade normais. E nos dois anos seguintes, pelo menos, deve fazer acompanhamento médico.

Em entrevista ao Fantástico, em janeiro, a transexual Lea T, filha do ex-jogador de futebol Toninho Cerezo, disse que se arrepende de ter feito a troca de sexo em março do ano passado e que não aconselha o procedimento para ninguém. Ela foi operada na Tailândia e passou um mês e meio no hospital sentindo dores.

"Eu achava que a minha felicidade era embasada na cirurgia. Fiquei mais à vontade, mas um pênis e uma vagina não trazem felicidade para ninguém. Nunca vou ser 100% mulher. Calço 42, minha mão é enorme, meu ombro é largo. Quando fiquei deitada na cama, entendi que isso tudo é uma bobeira. É um detalhe importante para a sociedade", disse na época.

Segundo o psicólogo Rafael Cossi, ver a cirurgia como forma de "normalização" social, para se adequar ao pensamento heterossexual, é uma das maiores críticas à mudança de sexo. Ele cita o site sexchangeregret.com, em que um grupo de transexuais arrependidos após a operação contesta a ideia de que a troca de sexo é o fim para todos os males.

"Muitas pessoas não ficam em paz consigo mesmas, não têm benefícios nem se veem de uma forma mais tranquila. Algumas desenvolvem problemas que não tinham antes, como alcoolismo ou dependência de drogas. Isso porque a cirurgia não altera só a imagem corporal para pertencer a outro sexo, mas tem várias complicações, pelo fato de o indivíduo passar a apresentar outro status na vida, um novo nome e ser visto de maneira diferente pela sociedade", explica.

Mas, por outro lado, tem gente que é muito beneficiada com a cirurgia, diz o psicólogo. "É caso a caso. Para a (ex-BBB) Ariadna, por exemplo, pelo que ela deu de entrevista, foi algo muito bom", ressalta.

Desde 2008, o SUS já fez 2.451 cirurgias de mudança de sexo de homem para mulher, único grupo de pacientes atendido atualmente, pelo fato de o Ministério da Saúde considerar que são casos mais comuns (três homens para uma mulher), mais bem padronizados e aprovados pelos conselhos de medicina.


Disponível em http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2013/03/transexual-pode-se-descobrir-ja-na-primeira-infancia-dizem-especialistas.html. Acesso em 04 jun 2013.

sábado, 8 de junho de 2013

'Transexualidade deve ser vista como característica', diz psicólogo

G1
15/10/2011

“A transexualidade não pode ter existido antes do século 19”. A afirmação é do psicólogo Rafael Cossi, autor do livro Corpo em Obra. Transexual é a pessoa que biologicamente pertence a um sexo, mas se identifica com o gênero que não corresponde a ele.

“Foi só no Século 19 que surgiu a ideia de que masculino e feminino são radicalmente opostos e tem que haver uma correspondência entre corpo e gênero”, aponta Cossi. Segundo o pesquisador, não havia essa relação antes, e a identidade de gênero não precisaria acompanhar o sexo da pessoa. “Isso [a identificação por gênero] é totalmente uma construção social”, acredita.

Cossi conta que, desde então, a psicanálise tenta definir o que leva uma pessoa a se identificar com um gênero que seria oposto. Ele diz que uma das linhas de pensamento vê a transexualidade como uma forma de psicose, quadro que inclui alucinações e delírios.
“Isso não é necessariamente um delírio”, diz o psicólogo. “Não dá para reduzir a transexualidade à psicose”. Para ele, a transexualidade tem que ser vista simplesmente como uma característica.

“Eu acredito que, assim, essas pessoas vão ter mais liberdade, com menos preconceito, viver melhor”, diz o pesquisador.

O livro Corpo em Obra foi baseado na dissertação de mestrado de Cossi no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). No trabalho, o autor analisou seis biografias de transexuais.


Disponível em http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/10/transexualidade-deve-ser-vista-como-caracteristica-diz-psicologo.html. Acesso em 04 jun 2013.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Mudar de corpo e voltar

Inês Raposo
30.11.2012 

Casos como este são uma minoria dentro de uma minoria - em Portugal só encontrámos um. Ainda assim, um diagnóstico errado de transexualidade pode levar homens e mulheres, pela segunda vez, à mesa de operações em busca do corpo que perderam.

Foi por volta dos cinco anos que Walt Heyer começou a sentir “que tinha que mudar, que era uma menina presa num corpo de rapaz.” A Perturbação de Identidade de Género, ou Transexualidade, começa por se manifestar, na maioria dos casos, ainda na infância. “A partir dos três anos surgem os primeiros sinais e, à medida que as crianças se vão apercebendo do seu corpo e do dos outros, intensifica-se a noção de que vivem num corpo errado”, afirma Décio Ferreira, cirurgião plástico português especialista em casos de transexualidade. “Viu aquele filme em que o protagonista acorda no corpo errado? É assim que estas pessoas se sentem. O corpo é normal, o cérebro é normal mas há uma desconformidade entre o sexo psicológico e o biológico”. 

“A minha avó costumava vestir-me com um vestido de chiffon roxo”, conta Walt Heyer ao Life&Style. No dia em que decidiu levar o segredo do vestido para casa dos pais, a notícia não foi bem recebida. Por não saber lidar com um filho que gostava de se vestir de menina, o pai encontrou na violência um modo para o tornar “mais homem e mais forte”. Enquanto isso, Walt era ainda vítima de abuso sexual por parte de um tio. “Tudo isto e a minha confusão sobre o género tornaram quase impossível que eu tivesse uma percepção clara sobre quem eu era enquanto crescia”, explica.

Em muitos casos, um dos principais desafios que os transexuais têm de enfrentar começa em casa devido à falta de compreensão dos familiares. “Existe uma maior aceitação das masculinidades femininas do que das feminilidades masculinas. Os rapazes são mais pressionados para se portarem como homenzinhos; as brincadeiras de meninas não são bem encaradas. Já com as raparigas é diferente, basta pensarmos nas ‘maria-rapaz’,” afirma Sandra Saleiro investigadora no projecto “Transexualidade e transgénero: identidades e expressões de género”, desenvolvido no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-IUL). 

Os anos passaram e com eles o roxo do vestido desbotou. Walt Heyer cresceu para ter um casamento feliz e dois filhos, mas a vontade de mudar de sexo não ficou para trás. Aos 42 anos, entrou no bloco operatório como Walt Heyer, e saiu uma pessoa diferente. Era Laura, Laura Jensen. “No princípio sentia-me óptimo. Estava feliz com o meu corpo e o meu género, apesar de ter sido rejeitado pela minha família e alguns amigos. Houve preconceito, mas entendo que as pessoas precisassem de me rejeitar, do mesmo modo que eu precisava de mudar de sexo. Funciona para os dois lados”.

O bilhete de ida

“Não sinto que tenha sido pressionado para fazer a operação. Foi mais uma questão de acreditar que os médicos e o psicólogo sabiam o que era melhor para mim.” Walt foi diagnosticado para tratamento cirúrgico por Paul Walker, um dos psicoterapeutas mais conceituados nos Estados Unidos da América em casos de Perturbação de Identidade de Género e também co-fundador da organização que escreveu as directivas internacionais para avaliar e aprovar potenciais candidatos à operação, a World Professional Association for Transgender Health (WPATH).

“Se os critérios da WPATH para o diagnóstico forem seguidos com rigor, o risco de fazer um diagnóstico errado é muito reduzido”, afirma Décio Ferreira. O cirurgião explica as diferentes etapas do processo de reatribuição sexual: “É preciso que uma equipa multidisciplinar faça o diagnóstico, depois uma outra equipa de profissionais dará uma segunda opinião. Se se confirmar que é mesmo uma Perturbação de Identidade de Género é que se avança para as fases seguintes”. Antes da cirurgia, os pacientes fazem psicoterapia, experimentam viver durante algum tempo como membro do sexo oposto em todas as interacções sociais e recebem tratamento hormonal, tudo num processo que pode demorar anos a concluir.

Júlia Pereira, do Grupo de Reflexão e Intervenção sobre Transexualidade (GRIT), acredita que toda a burocracia da mudança de género e o tempo que os procedimentos implicam “fazem com que os casos de arrependimento sejam muito raros.” A representante do GRIT não tem conhecimento de ninguém que se tenha arrependido de fazer a cirurgia de mudança de sexo e acrescenta que “quando um processo é tão demorado e complexo, só quem tem a certeza é que vai em frente”. Em Portugal, este tipo de procedimentos só foi permitido pela Ordem dos Médicos em 1995, passando depois a fazer parte do Serviço Nacional de Saúde.

“A literatura documenta que os casos de arrependimento são altamente minoritários. Claro que podem acontecer, mas serão sempre raros”, afirma Sandra Saleiro. A investigadora, que entrevistou 25 transexuais portugueses, não encontrou quem tenha mudado de opinião e alerta: “Alguns desses casos mais mediáticos já foram usados para reforçar argumentos daqueles que pretendem dificultar os processos de transição”. 

O regresso à origem

A falta de informação sobre transexualidade reflecte-se na inexistência de dados oficiais que permitam saber ao certo quantos homens e mulheres transexuais existem em Portugal. “Eu diria que cá temos pouco mais de 200 pessoas. Por ano devem aparecer uns 10 ou 12 casos novos”, afirma Décio Ferreira. E arrependimentos? “Só sei de um. E é muito específico. Foi um diagnóstico mal feito por profissionais que não sabiam o que estavam a fazer”, defende o cirurgião plástico. A pessoa de que fala é agora um paciente seu, Décio Ferreira está a ajudá-lo inverter a operação de mudança de sexo, não escondendo que “nunca vai voltar a ser igual” e que o processo reverte-se "dentro dos possíveis.” 

Devido à instabilidade psicológica deste paciente, a sua história chega-nos pelas palavras do médico: “Depois de o diagnosticarem com Perturbação de Identidade de Género, o rapaz, a família e amigos começaram a juntar dinheiro para pagar a operação na Tailândia. Lá confiaram no veredicto que vinha de Portugal e operam-no”. Ao regressar surgiram os primeiros problemas: “ele percebeu que afinal era naquele corpo feminino que não se sentia ele próprio, depois da operação é que tinha ficado no corpo errado”. Décio Ferreira lamenta “a incompetência dos que o diagnosticaram em apenas meia dúzia de semanas” e as consequências desse acto: “Nos dois anos que se seguiram à operação o meu paciente já se tentou suicidar três vezes”. 

O suicídio também passou pela cabeça de Walt Heyer quando se apercebeu de que tinha cometido um erro: “Comecei a estudar psicologia, a aprender mais sobre a mente e o corpo e foi então que me arrependi muito da operação. Percebi que é uma ilusão cosmética, hormonal e cirúrgica e que, por muito bem que eu parecesse, não tinha mudado de género”. Walt voltou a sentir-se um hóspede num corpo alheio e descobriu que tinha Transtorno Dissociativo de Personalidade, condição mental também conhecida como personalidades múltiplas – uma das quais mulher - e que isso pode ter contribuído para a falha no diagnóstico de transexualidade. “Não podia mais viver assim e comecei o caminho de volta para o sexo com que nasci”, explica Walt. 

Hoje Walt Heyer tem 72 anos, escreve livros sobre o tempo que viveu como mulher e defende que “os problemas não se resolvem com uma mudança de sexo”, procedimento que considera “de alto risco”. A sua experiência particular acabou por influenciar o modo como encara a transexualidade e generaliza os tratamentos a ela associados. Porém, para o cirurgião Décio Ferreira existe uma particularidade nos Estados Unidos que os distingue de Portugal: “Lá às vezes colocam os direitos à frente da ciência e esquecem-se que se uma pessoa diz que é o Napoleão isso pode não ser bem assim.” 

Disponível em http://lifestyle.publico.pt/artigos/313679_mudar-de-corpo-e-voltar. Acesso em 07 dez 2012

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O ânus é um órgão sexual?

Leandro Colling
novembro 7, 2012

O texto de hoje provavelmente vai gerar muita polêmica. As reações ao que postamos aqui só mostram o quanto os temas em questão são cercados por tabus e discursos de verdade que tentam, a todo custo, obrigar todas as pessoas a usar os seus corpos apenas dentro de uma mesma forma.

Vou direto à resposta da pergunta do título: sim, o ânus pode ser considerado um órgão sexual. Na verdade, qualquer outra parte do seu corpo pode ser considerada como um órgão sexual, se assim você desejar e o sentir. Primeiro vou falar do ânus especificamente e depois ampliarei o debate para pensar o corpo como um todo, ok?

Sobre o ânus ou, para usar a palavra mais usada pelas pessoas, o cu: alguns profissionais da saúde e da sexologia até concordam que o ânus pode ser considerado uma área erógena, que pode gerar prazer ao ser tocado. Alguns recorrem inclusive a Freud, que disse que um dos nossos primeiros prazeres na vida se dá através da chamada “fase anal”. Pois eu quero ir além disso, sem me filiar aos freudianos. Quero defender que o cu pode ser considerado um órgão sexual, tal como o pênis e a vagina o são.

Profissionais da saúde considerados bem progressistas dizem não ter nada contra a prática sexual anal, mas enfatizam que o ânus não teria sido criado para esta finalidade e que, por isso, não pode ser qualificado como um órgão sexual, mas como um órgão do aparelho digestivo do corpo humano.

Por mais simpática e progressista que essa leitura pode ser ela esconde uma norma sobre a sexualidade, ou melhor, um conjunto de normas criadas pelo discurso médico em consonância com outras instituições sociais que historicamente desejam controlar e regulamentar a sexualidade das pessoas. Por que? A vagina e a boca também parte do aparelho digestivo e nem por isso são desqualificadas como órgãos sexuais, no sentido de que podem ser utilizados na prática sexual sem problema algum.

Os profissionais da saúde, em sua maioria, dizem que o ânus é um local cheio de impurezas, em suma, é um local sujo e isso pode disseminar a proliferação de muitas doenças. No entanto, as pessoas que praticam sexo anal (gays ou não) já faz muito tempo que descobriram uma forma de deixar o ânus bem limpo, através do que os gays chamam de chuca (ou enema), uma espécie de lavagem que consiste na introdução de água no canal do ânus para ser despejada logo em seguida. A vagina, o pênis e boca, caso não sejam bem limpos, também serão órgãos bem sujos e proliferadores de doenças. Então, por que considerar que apenas um órgão é sujo? O que opera por traz desse discurso?

Certamente, trata-se de uma leitura que é influenciada pela norma hegemônica que estamos sempre problematizando em nossos textos aqui no blog. Michel Foucault estudou muito bem isso e devemos muitas dessas reflexões a ele. Em suma, essa norma tenta determinar tudo sobre a nossa sexualidade. Obriga que todos sejamos heterossexuais e de que façamos sexo apenas de uma determinada maneira e também especifica muito detalhadamente quais partes dos nossos corpos são erógenas e que podem ser considerados como órgãos sexuais.

Outros poderão alegar que o sexo anal deve ser combatido porque essa prática seria anti-natural, uma vez que não gera a reprodução da espécie humana. Mais um argumento que não fica em pé porque, se concordarmos com ele, toda e qualquer prática sexual só poderia ser feita se tivesse como objetivo a reprodução.

Mas, como eu disse no início, não quero tratar apenas do ânus. Uso o cu apenas como um exemplo bem provocativo e polêmico para ilustrar como nossos corpos sofrem as influências de saberes que regulam, historicamente, os nossos corpos, nossas sexualidades e nossos gêneros. Eu poderia falar de outras partes do corpo que são usadas, por algumas pessoas, como legítimos órgãos sexuais. Entre elas, certamente, estão as mãos. Para muitas lésbicas, por exemplo, as mãos são verdadeiros órgãos sexuais, elas podem se transformar em instrumentos fundamentais.

Para os praticantes de fist-fucking ocorre o mesmo. Para quem não sabe, os praticantes de fist-fucking introduzem as mãos e até os punhos no ânus de seus parceiros sexuais. O pênis e até mesmo a ereção, em geral, não possuem importância alguma nessas relações sexuais. Como nos alertam alguns pesquisadores, talvez essa seja única prática sexual que foi inventada no século 20. Vejam como nossa criatividade em relação às práticas sexuais ficou bloqueada a ponto de que em 100 anos apenas uma nova forma de praticar sexo foi criada. Enquanto isso, quase sempre fazemos sexo mais ou menos da mesma forma, muitas vezes seguindo um roteiro que obedece inclusive os padrões de uma indústria do entretenimento, notadamente a indústria pornô hegemônica, tema que desenvolverei em outro texto.

Para finalizar, quero defender, seguindo Deleuze e Guattari, que pelo menos desde o livro O anti-épido, de 1972, nos permitem entender o nosso corpo inteiro como um corpo sexual. Ou seja, nós não transamos apenas com pênis, vaginas ou ânus, mas transamos com nossos corpos e gêneros. E mais: transamos sempre em um contexto, com algum cenário, transamos, em suma, em um ambiente.

Aliás, às vezes pensamos em detalhes sobre qual será o ambiente da nossa transa. Se isso é verdade, por que ainda vamos considerar como sexuais apenas determinados centímetros de nossos corpos? Não estou sugerindo que todas as pessoas devam usar o ânus como órgão sexual, da mesma forma como muitas pessoas não consideram os seus pênis ou vaginas como aparelhos fundamentais para a prática sexual e obtenção de prazer. Apenas estou evidenciando mais uma questão relativa à diversidade sexual que existe por aí, queiram algumas pessoas e/ou instituições ou não.

Devo boa parte das reflexões realizadas acima a Javier Sáez e Sejo Carrascosa, autores do livro Por el culo – políticas anales, da editora Egales, lançado ano passado na Espanha e ainda sem tradução em Língua Portuguesa.

Nessa obra, eles discutem esses e vários outros temas. Termino com apenas um pequeno trecho da introdução do livro, onde eles dizem que a proposta do texto é “ver o que o cu põe em jogo. Ver por que o sexo anal provoca tanto desprezo, tanto medo, tanta fascinação, tanta hipocrisia, tanto desejo, tanto ódio. E, sobretudo, revelar que essa vigilância de nossos traseiros não é uniforme: depende se o cu penetrado é branco ou negro, se é de uma mulher ou de um homem ou de um/a trans, se nesse ato se é ativo ou passivo, se é um cu penetrado por um vibrador, um pênis ou um punho, se o sujeito penetrado se sente orgulhoso ou envergonhado, se é penetrado com camisinha ou não, se é um cu rico ou pobre, se é católico ou muçulmano. É nessas variáveis onde veremos desdobrar-se a polícia do cu, e também é aí onde se articula a política do cu; é nessa rede onde o poder se exerce, e onde se constroem o ódio, o machismo, a homofobia e o racismo”. (Sáez e Carrascosa, 2011, p. 13).

Disponível em <http://www.ibahia.com/a/blogs/sexualidade/2012/11/07/o-anus-e-um-orgao-sexual/>. Acesso em 13 nov 2012.